No dia 27 de fevereiro de 2025 faleceu Boris Spassky, o décimo campeão mundial de xadrez. Ele foi um gigante dentro e fora dos tabuleiros e o seu legado jamais será esquecido.
[Veja o vídeo que fiz em homenagem a Spassky]
Dono de uma personalidade única, ao mesmo tempo confiante, destemido e irreverente, Boris jamais se curvou para os que exigiam sua subordinação e sempre encarou de frente e com coragem os obstáculos. O excelente livro “Russians versus Fischer” tem relatos das reuniões da KGB com altos funcionários e enxadristas sobre como resolver o “problema Fischer”. Spassky nunca se intimidou com a presença dos temidos burocratas, com sacadas sinceras como “o que vocês vão fazer quando todos nós perdermos para o Fischer” até as mais irônicas, como a sugestão de chamar um sexólogo para a equipe. O galã soviético da década de 60, aliás, claramente tinha mais que uma paixão: “Which do I prefer? Sex or chess? It depends on the position.” [Leia nesse artigo mais frases brilhantes para usar com seus amigos enxadristas]
Spassky superou a fome durante o Cerco a Leningrado e fez questão de enfrentar Bobby Fischer no lendário “Match do Século”, disputado em 1972, quando sofria pressão das autoridades soviéticas para voltar a Moscou e ficar com o título, enquanto Fischer fazia cada vez mais exigências para participar da disputa. Ele mesmo sabia que o americano era o jogador mais forte no início da década de 70, mas Boris não fugia do combate.
Antes de 1972, vale lembrar, Spassky teve uma carreira brilhante. Foi menino prodígio e campeão mundial juvenil, além de ter sido o grande mestre mais jovem da história, na sua época, com 18 anos (Fischer depois quebraria esse recorde). Os que estranham a idade, sabendo que hoje em dia o recorde de GM mais novo é de 12 anos, precisam saber que os requisitos para se conseguir o título de GM naquela época eram incomparavelmente mais difíceis do que hoje em dia. Spassky, de fato, já era um dos melhores enxadristas do mundo aos 18 anos, capaz de ganhar de campeões mundiais, algo que os GMs de 12 anos ainda não são capazes de fazer.
Ele foi foi um dos poucos enxadristas a superar por duas vezes a duríssima disputa dos matches de Candidatos, vencendo os ciclos de 1965 e 1968. Os matches com Petrosian em 1966 e 1969 foram fantásticos e deveriam ser mais estudados. Um enxadrista que adorava jogar com a iniciativa (Spassky) e um estrategista frio e pragmático, que dava corda para o adversário se enforcar (Petrosian). Spassky disse que aprendeu muito com o primeiro match e que no segundo ciclo ele havia se tornado imparável. “Eu me transformei em um Urso Russo”, disse ele, que adorava uma metáfora. Ele sabia que sua vida depois de se tornar campeão mundial não seria a mesma. [O dia que Spassky chorou].
O match de 1972, que popularizou o xadrez no mundo inteiro, não seria o mesmo sem a sua participação. O evento foi retratado em incontáveis livros e até em um filme (O Dono do Jogo), que traz uma imagem injusta de Spassky como o vilão e um fantoche do regime – tudo que ele não era. Foi com tristeza que assisti esse filme horrível quando lançado em 2014 (o único ponto forte é que o ator Liev Shreiber ficou bem parecido com o Spassky). Mais triste ainda foi ler os obituários publicados no estilo copia-cola em diversos sites, citando-o como o enxadrista que foi ofuscado pela derrota no Match do Século.
Que grande bobagem. Spassky continuou jogando em alto nível depois do match, ainda que sem a mesma ambição. Ele foi Campeão Soviético em 1973 e ainda permaneceu mais uma década entre os melhores do mundo.
Boris foi um pensador independente e que inclusive nutria grande admiração por Fischer. Eles voltariam a se enfrentar em um polêmico match disputado na Iugoslávia, em 1992, que garantiu a Spassky um milionário cachê. Depois disso nosso herói ajudou muitos dos seus amigos que tinham perdido tudo com a queda da União Soviética. Ele chegou a dizer algo como “comprei casas para vários dos meus amigos, mas me esqueci de comprar a minha”.
Um amigo meu conviveu com Spassky durante uma semana e sobre isso ele me disse: 15 minutos de conversa com ele é equivalente a anos de aprendizado. Não é difícil de concordar: tal qual um sábio de filmes ou desenho animado, ele fala sempre utilizando enigmas e nunca sabemos quando está falando sério, sendo irônico ou apenas polêmico. Ele fugia do senso comum.
Nos despedimos desse gênio, um dos maiores enxadristas da história, um personagem que se tornou maior que a vida e que sempre será o meu favorito. A passagem de um homem é nada mais que um sopro para a história, mas as partidas dos grandes enxadristas permanecem por muito mais tempo. Abaixo uma seleção de algumas das minhas partidas favoritas de Boris Spassky, todas elas analisadas previamente na seção “Partida do Dia”:
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