O Caderno do Jovem Kasparov

    Em 2002 viajei a Moscou para um treinamento de duas semanas com o renomado treinador Mark Dvoretsky. Depois de alguns dias, o GM Peter Nielsen (hoje o treinador do Magnus Carlsen) chegou para participar também. Mais do que as sessões de treinamento (que foram muito úteis) o que me lembro hoje são as histórias que o Dvoretsky contava em nossa pausa para o lanche.

     

    Nessas pausas, Dvora e sua simpática esposa nos ofereciam os quitutes mais variados, especialmente doces, regados a chá e café. Então ele começava a contar as histórias do xadrez na União Soviética. As “pausas” às vezes duravam mais de 2 horas.

     

    Em meados da década de 70, Dvoretsky era um dos treinadores da escola de Botvinnik e foi escalado para uma aula de finais com jovens talentos. Um deles se chamava Garry Kasparov e tinha por volta de 13 anos.

     

    mikhail botvinnik garry kasparov

     

    A aula era sobre finais de torres. Como era praxe, ao término da sessão os alunos recebiam a tarefa de analisar uma posição complexa. O “dever de casa” era sobre uma famosa partida Capablanca x Alekhine, disputada no torneio de Nova Iorque 1924.

     

    Não vou entrar em detalhes, mesmo porque não me lembro das sutilezas. Mas, basicamente, jogam as brancas na posição do diagrama abaixo, após 38…c6:

     

     

    Capablanca tem um peão a mais e jogou aqui 39.h4, um lance natural. Mas a partida seguiu 39…Th8 40.g3 Th5!!, ativando a torre. Alekhine conseguiu arrancar o empate.

     

    Kasparov encontrou essa manobra defensiva em suas análises e sugeriu muitas variantes para evitá-la. Não lembro se a sugestão dele foi 39.h3 ou 39.g3, para deixar o peão de “h” defendido. O que lembro é que o Dvoretsky ficou impressionado com a qualidades das análises.

     

    Tão impressionado, aliás, que ele teve a certeza que Kasparov seria um desafiante ao título mundial no futuro. Ele nos confessou que tentou “guardar” o caderno com as análises como um souvenir adiantado de um provável campeão mundial. Mas Klara Kasparova, mãe rigorosa e protetora, percebeu os planos malignos e exigiu o caderno de volta.

     

    Essa história tem um toque fascinante sobre a passagem do tempo. Os grandes rivais que se enfrentaram em 1924, quando ainda não eram inimigos mortais. Alekhine haveria de derrotar Capablanca em 1927 justamente por seu jogo superior nos finais. A partida decisiva do match terminou em um final de torres.

     

    Essa rivalidade teve um “espelho” muitos anos depois, quando Karpov/Capablanca enfrentrou Kasparov/Alekhine em vários matches.

     

    Dvoretsky tinha razão. Aquele jovem tinha um futuro promissor.

    Uma resposta para “O Caderno do Jovem Kasparov”

    • Lucas

      Quando leio - e acredito que quando você escreva também - sobre esses "velhos" tempos de Kasparov, Karpov, aviva sempre em mim uma certa aura. Algo dos jogadores estudando em seus cadernos, anotações, trocando experiências com aqueles com quem estudavam juntos, quase algo secreto. Você acha que isso é uma forma de nostalgia, saudosismo, ou o xadrez ficou tão técnico que se tornou mais "frio" mesmo? Afinal de contas, várias aberturas - usadas com frequência em outros tempos -, ou linhas, foram refutadas com o uso de engines; há uma mecanicidade maior no jogo. Não que isso tire o mérito dos grandes jogadores da atualidade, claro, mas sempre vejo essas histórias dos outros tempos como algo meio mágico, místico.

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