RENÚNCIA, PERO NO MUCHO…
Na última segunda-feira (27) o mundo do xadrez recebeu uma notícia chocante: o milionário russo Kirsan Ilyumzhinov, presidente da FIDE, teria anunciado a sua renúncia ao cargo após o final da reunião do Conselho Presidencial Trimestral da entidade – que estava acontecendo na cidade grega de Atenas. A notícia foi dada pelo próprio site da FIDE.
O polêmico Ilyumzhinov era o presidente da entidade máxima do xadrez mundial desde 1996 – tendo até vencido, em 2014, a disputa pela presidência contra ninguém menos que o ex-campeão mundial Garry Kasparov.
A “era Kirsan” já dura 22 anos
Mas… Kirsan Ilymshinov era, ou ainda é, o presidente da FIDE? Bom, pelo jeito, não é só no Brasil que existem problemas e dúvidas sobre presidências, renúncias e impeachments…
Pouco tempo depois do anúncio (que, de novo, foi dado pelo próprio site da FIDE!), Ilyumzhinov e Andrey Filatov, presidente da Federação Russa de Xadrez e vice-presidente da FIDE, desmentiram a notícia – por meio de alguns meios de comunicação russos. Ambos declararam que o fato não passava de uma armação. Uma conspiração. Kirsan declarou que não fez nenhuma afirmação sobre deixar o cargo e que continuará no seu posto até, pelo menos, a próxima Assembleia Geral da entidade – que acontecerá em 2018, em Batumi (Geórgia).
O chocante anúncio no site da FIDE
TENTANDO ENTENDER A CONFUSÃO
Na segunda-feira a página da FIDE publicou a seguinte nota: “No final da reunião do Conselho, realizada em Atenas, Grécia, em 26 de Março de 2017, o Sr. Kirsan Ilyumzhinov anunciou sua renúncia ao cargo de presidente da FIDE. O Conselho Presidencial foi formalmente informado e uma reunião especial foi acordada para abril.”
Mas antes mesmo da notícia conseguir tomar repercussão no xadrez mundial, Kirsan, por meio de alguns jornais russos, já desmentia o fato. Ele declarou ao Tass News Agency: “Eles queriam me expulsar, mas não conseguiram. Eu não assinei nada e não vou renunciar. Eu acho que isto foi feito pela [Federação] Americana e é aquilo que podemos chamar de conspiração. É um golpe da Federação de Xadrez Americana e seus aliados. Eles tentaram antes e mais de uma vez. E em Atenas eles tentaram discutir a questão da minha renúncia, mas não conseguiram. Além disso, recebi ameaças e pedidos para a minha renúncia”.
E completou – desta vez para o RSport: “Eu não sei de onde as informações sobre a minha renúncia surgiram. Eu acho que alguém decidiu fazer uma piada ou está confundindo o seu desejo com a realidade. Isto não tem qualquer relação com a realidade e a questão não foi discutida na reunião do Conselho Presidencial. Alguns membros tentaram convencer-me nessa direção – essas forças, que me incluíram na lista de sanções [Kirsan sofre uma sanção pelo governo dos EUA devido as suas relações com o governo da Síria – falaremos disso adiante] estão agora a pedir a minha renúncia. Eles discutiram tudo isso pelas minhas costas, mas isso não aparece no Conselho Presidencial”.
Andrey Filatov, também em entrevista ao TASS New Agency, endossou as declarações de Ilyumzhinov – dizendo que era a primeira vez que ouvia alguma notícia sobre a renúncia e que, inclusive, acabava de se reunir com Kirsan e ambos discutiram planos futuros para a FIDE.
Andrey Filatov e Kirzan Ilyumzhinov
Entretanto, enquanto isso, Nigel Freeman, Diretor Executivo da FIDE, declarava para o também russo Sport-Express: “O Sr. Ilyumzhinov anunciou sua renúncia. Em abril se levará adiante uma Junta Presidencial Extraordinária para discutir o tema”. Estava firmada, ou reafirmada, a confusão – e que, apesar de não ser das melhores propagadas para a imagem do nosso esporte, não deixou de ser recebida com ironia. Seja por “celebridades” enxadristas ou por “meros mortais”…
O sempre polêmico Nigel Short deu a sua versão para os fatos:
“Golpe #Grego. Kirsan apunhalado pelas costas. Hora da pipoca. #Fide #gensunasumus”
Nigel aparentemente está se divertindo com a situação. Segundo ele “Kirsan e Makro são os homens mais desprezíveis da política do xadrez e estão envolvidos em uma batalha de morte. Vai ser bonito de assistir”.
Ele publicou uma carta da FIDE o “parabenizando” pelos tweets que denunciaram o golpe. O conteúdo é intraduzível e fica a pergunta: será que é uma carta verídica? A FIDE chegaria a esse ponto?
E piadas no twitter foram inevitáveis:
“Eu já havia visto partidas de xadrez em que um abandono é mal interpretado. Mas uma presidência?”
E a confusão não parou por aí. Ilyumzhinov publicou, primeiramente, duas cartas abertas. Em uma delas, endereçada a todas as Federações de Xadrez, deixava claro que não iria renunciar e pedindo a retirada da falsa nota do site da FIDE. Como o pedido não foi atendido, e na terça-feira de manhã a renúncia ainda permanecia no site, Kirsan publicou uma segunda carta aberta – desta vez dirigida diretamente ao já citado aqui Diretor Executivo da FIDE, Nigel Freeman, cobrando um posição.
Freeman não tardou em responder – também em uma carta aberta. O Diretor Executivo esclarece que durante o Conselho Presidencial de Atenas, Kirsan teria repetido três vezes a frase “Eu me demito” – ou “eu renuncio”.
Novas respostas de Ilyumzhinov: mais duas cartas abertas! A primeira, mais uma vez dirigida às Federações e aos enxadristas de modo geral, Kirsan reafirmava não ser verdade a sua renúncia – e destacava a resolução das dificuldades que haviam aparecido nos últimos tempos e um otimista olhar para o futuro da FIDE (ainda sobre seu comando). Já a última carta (ao menos até agora!) também não trouxe nenhum destinatário novo e foi endereçada a Nigel Freeman. Esta, talvez a mais interessante, não desmente a carta de Freeman – sobre Kirsan haver dito que estava renunciando ao cargo de Presidente da FIDE. Mas Ilyumzhinov atesta o fato de que as discussões feitas na reunião, que teria gerado toda esta confusão, tinham sido, no mínimo, “calorosas”, e como o inglês não é a sua língua materna, talvez ele não tenha se feito entender perfeitamente. Ilyumzhinov reafirma o interesse em disputar a presidência em 2018 e deixa claro não haver necessidade nenhuma de uma reunião extraordinária em Abril.
UM REI (OU UM PEÃO?) ISOLADO: A SANÇÃO SOFRIDA POR KIRSAN
Seja qual for a verdade deste caso, um fato inegável é que Ilyumzhinov vem caminhando na corda bamba há um bom tempo. Suas relações com a Síria, ou mesmo a polêmica realização do Campeonato Mundial Feminino em Teerã, no Irã, e a consequente inclusão de Kirsan na lista de sanções dos EUA, vêm deixando o (até que se prove o contrário) presidente da FIDE um tanto quanto isolado. Ou, pelo menos, criando um “racha” dentro da entidade: de um lado, a Federação Russa e a grande maioria dos países do hemisfério oriental; do outro, a cada vez mais influente Federação Norte-americana – com apoio das Federações dos países latino-americanos e de alguns outros países europeus.
Voltando à delicada questão da sanção de Kirsan por parte dos EUA, a decisão do governo norte-americano não parece ter nenhuma perspectiva de mudança a curto prazo. E, obviamente, é impossível considerar a gerência de qualquer negócio/esporte em nível mundial sem considerar o mercado norte-americano – basta lembrarmos onde foi disputada a recente final do Campeonato Mundial entre Magnus Carlsen e Sergey Karjakin (nada menos que Nova York). Embora a final tenha acontecido em solo americano, não é difícil imaginar as complicações que ocorreram para a realização do evento.
De toda maneira, o presidente da Confederação Pan-americana de xadrez, o mexicano Jorge Vera, ao final do ano passado, já destacava o isolamento de Kirsan. Segundo Vera, para evitar ser completamente bloqueado no Departamento do Tesouro dos Estados Unidos em 2015, o presidente Ilyumzhinov compartilhou todos os poderes executivos de seu cargo com o então presidente adjunto, o grego Georgios Makropoulos – o que acaba gerando uma situação, no mínimo, curiosa. Para não dizer constrangedora. Em suma, ainda que Ilyumzhinov tenha reiterado em diversas ocasiões que buscará a reeleição em 2018, é difícil acreditar que ela possa acontecer caso persista a sanção norte-americana.
RESUMO DA ÓPERA
O que podemos deduzir de toda essa história? Parece claro que o descontentamento com Kirsan é grande, inclusive dentro da própria FIDE. Também está claro que Kirsan é agora inimigo de Makropoulos, Freeman e muitos outros membros da Federação. Ao ceder os poderes executivos por conta da confusão com o governo americano, Kirsan se viu enfraquecido e seus adversários dentro da FIDE estão se aproveitando da oportunidade para expulsá-lo. A verdade é que a a FIDE caminha de mal a pior atualmente, com ou sem Kirsan.
E você? O que achava desta confusão toda?
#GensUnaSumus (?)
FONTES
Escrito por Equipe Academia de Xadrez Rafael Leitão 02.04.2017.
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Além de Fisher, qual outro estadunidense participou de uma final de campeonato mundial? O xadrez dos Estados Unidos está entre os top 10? O que se sabe é que o xadrez ocidental sempre foi estatisticamente de segundo plano (ou terceiro). Desde 1927 para cá houve 16 diferentes campeões mundiais: apenas dois ocidentais Fischer (este, um campeão de opereta, único na história a jamais jogar sequer uma partida em defesa do título) e Carlsen, todos os dois em diferentes momentos de decadência da prática. Não há dinheiro que compense a mediocridade do xadrez ocidental nem mesmo o dinheiro de Nova Iorque ou de Las Vegas. É certo que a decadência ocidental não arrastará consigo o xadrez.