Não muito depois que começamos a fazer parte da equipe de redatores d`Academia, logo após uma série de notícias um pouco mais “pessoais” de nossa parte (se não estamos enganados foram as matérias sobre a Copa do Mundo de Xadrez do ano passado), acabamos recebendo algumas críticas – e até alguns elogios também, por incrível que pareça. Contudo, dentro dessas críticas, uma em especial nos marcou: ela afirmava o caráter por demais subjetivo das nossas coberturas – o que, algumas vezes, poderia acabar deixando o xadrez de lado. E mais: que os textos lembravam um pouco às crônicas do Mestre Internacional Hélder Câmara. Ato falho ou não do nosso crítico, de todos os comentários que recebemos sobre as matérias, criticando-as ou elogiando-as, nenhum surgiu mais efeito do que este.
É bem provável que se fôssemos escolher, assim, “no susto”, alguns dos nossos “Grandes Predecessores” – embora ainda sejamos um mero “pequeno predecessor” –, sem dúvida nenhuma nos vem à mente a (auto)biografia de Mikhail Tal: Al Ataque, com suas histórias deliciosas (como, por exemplo, a indagação que “O mago de Riga” começa a fazer, durante uma partida, sobre como seria possível retirar um hipopótamo de um pântano – guindastes? Cordas? Helicóptero? É claro que Tal não consegue chegar a nenhuma conclusão e, já impaciente, diz: “Que se afogue!”. E sacrifica um cavalo…); Bent Larsen, já morando na Argentina, passou a escrever muitas crônicas para a consagrada revista Ajedrez (extinta?). As ironias do mestre dinamarquês são preciosas. Eis o título e subtítulo de um de seus artigos: “As negras estão bem. Uma brilhante ideia… que perde”; E, por fim, como podem imaginar, em se tratando de xadrez e crônicas, ou algo próximo a isso (ou mesmo nada disso), sem dúvida nenhuma, impossível não nos lembrarmos de Diagonais: crônicas de xadrez, do MI Hélder Câmara.
Infelizmente não temos o livro aqui conosco… Deve estar guardado no velho armário do Clube de Xadrez onde aprendemos os primeiros movimentos e onde ouvimos as primeiras histórias sobre o MI Hélder Câmara – que se orgulhava por ter o mesmo nome de seu tio, o bispo Dom Hélder Pessoa Câmara, profundo defensor dos Direitos Humanos durante a Ditadura Militar e único brasileiro indicado quatro vezes ao prêmio Nobel da paz (este último dado, devemos confessar, nos era desconhecido e foi retirado numa consulta de última hora nessas enciclopédias virtuais). A propósito, o homônimo e o parentesco renderam ao enxadrista um mês de prisão por suspeita de subversão no ano de 1971.
Ainda assim, o MI Câmara não só se orgulhava de herdar o nome do tio, a quem ele chamava de “titio”, pelo que nos foi contado, mas, sobretudo, gostava de lembrar que a casa de “titio” não possuía portas nem janelas. O MI Hélder perguntava: “Mas titio, isso não é perigoso? O senhor não tem medo?”. Ao qual Dom Hélder calmamente respondia: “Não há nada aqui para levar, meu filho… E se tiver também, não é meu. É de quem quiser”. Também nos lembramos de ouvir outras histórias, contadas pelo mesmo forte MI postal do interior de São Paulo, e também forte jogador ao vivo, que nos contou essa.
Certa vez, quando esse MI postal foi disputar um torneio em São Paulo, acabou ficando hospedado na casa do MI Hélder Câmara. Isso lá pelos idos dos anos 60, 70… A casa não possuía muita coisa (mais uma herança do titio?): uma cama, um sofá, uma geladeira e um tabuleiro de xadrez em cima de uma caixa. Só. No tabuleiro duas casas estavam marcadas: em f7 uma foto de Tal; em f2 uma foto de Fischer (ou seria Alekhine? Ou Morphy? Seria em outra casa? Já faz muito tempo… A foto de Tal temos certeza. E a casa também: f7).
Mas voltando a Diagonais, embora sem o livro aqui conosco, como não lembrarmos da crônica “Essa Judit…” – que exaltava uma vitória da então jovem Judit Polgar em cima do ex-campeão mundial Boris Spassky. Depois da derrota, numa grande infelicidade, Spassky teria dito: “ela jogou feito um homem”. A resposta veio pelo Mestre Câmara: “Então seria o caso de dizer que ele jogou feito uma mulher?”. Aliás, falando em Spassky, o “match retorno” entre ele e Fischer também está lá no livro Diagonais – e haja paixão para comentar e exaltar a genialidade de Fischer, apesar de tanto tempo longe dos tabuleiros. E falando em Fischer…
O MI Hélder Câmara teve o prazer de enfrentar o genial norte-americano numa Olimpíada. Sabendo do costumeiro atraso de Fischer para as rodadas (ele gostava de chegar depois que tudo estava mais “calmo”), Hélder, de pretas, escondeu-se atrás de um pilar e esperou o gênio de quase dois metros de altura chegar. Fischer chegou, preencheu as planilhas, fez o primeiro lance, olhou para um lado, olhou para o outro, e, impaciente, levantou novamente e saiu – teria achado uma afronta? Só ele poderia fazer isso? O fato é que o MI Hélder Câmara nos conta que voltou para a mesa, fez seu lance, e tornou a se levantar e esconder-se. E a brincadeira durou aproximadamente uns 5 lances! Hélder acabou perdendo a partida, mas quem ficou com a derrota foi seu irmão, pois a batalha acabou sendo publicada com o nome dele, Ronald Câmara (também forte enxadrista, bicampeão brasileiro, assim como Hélder, e, aliás, também um “predecessor” com o seu fantástico Peões na Sétima). Depois de saber do ocorrido e ver a partida, Ronald teria dito para o irmão: “Da próxima vez vê se joga melhor!”. Hélder, após nos mostrar a vitória de Fischer, responde para nós e o irmão: “E adiantaria?”.
Por fim, as crônicas sobre Tal, eterno ídolo de Hélder, também são espetaculares (aliás, o que não é ali em Diagonais?). Lá está comentada a última partida que Tal teria disputado, e vencido, num torneio. Se não estamos enganados mais uma vez, a partida termina com Tal manobrando o Rei para e1 – numa ironia do destino que o mestre Hélder Câmara não deixa escapar: depois de tantas idas e vindas e tanto caos e combinações e golpes, a última manobra do Mago de Riga é levar o Rei para e1. Como se soubesse que devia arrumar as peças para uma nova partida. Para uma nova existência…
E haveria mais outras tantas histórias que poderíamos lembrar ali de Diagonais – embora nem saibamos se essas são contadas exatamente assim, como dissemos aqui. É provável que tenhamos omitido um ou outro ponto, misturado uma ou outra história. Mas, de toda maneira, foram assim que elas ficaram marcadas em nós para sempre. E é assim que deve ser guardada a memória do enxadrista, do cronista e do homem Hélder Câmara – muito mais em nossos corações do que num velho armário de Clube de Xadrez…
Nota de Rafael Leitão:
Uma grande perda para o xadrez brasileiro. Hélder Câmara, além de fortíssimo enxadrista, desenvolveu um primoroso trabalho como professor de xadrez, ajudando a formar gerações de enxadristas. Tive o privilégio de enfrentá-lo uma vez em um torneio no Clube de Xadrez São Paulo, em 1997. Seu legado jamais será esquecido.
Fontes:
Escrito por Equipe Academia de Xadrez Rafael Leitão 21.02.2016.
Boa lembrança Rafael, recordar é viver. Já tinha visto umas partidas do estimado mestre Câmara e também lido um pouco de sua vida. Contribuiu para o desenvolvimento do xadrez brasileiro e trazia na alma o gosto pelo xadrez e o dom de expressar literariamente o esporte nas suas crônicas. PARABÉNS Rafael por mais uma vez colocar em seu artigo um cidadão que teve relevante importancia para o país. Assim como você realizou seu sonho de jogador Rafael, ele também deve ter vivido grandes momentos e o escritor Jorge Luis Borges dizia que " quem realiza um sonho, constrói uma parcela de sua própria eternidade". O xadrez agradece sua gratidão Rafael. FREDERICO SIMÕES SOARES.
A crônica "A última partida" é tão bela que chegam a brotar as primeiras lágrimas de emoção. Bela lembrança e bela homenagem!