Partidas Adiadas de Xadrez: A Descoberta de Geller e as Lágrimas de Fischer
Olimpíada de Varna (Bulgária), 1962. Naquele dia (era a penúltima rodada) o salão não pôde acomodar todos os espectadores que desejavam presenciar o match entre URSS X EUA, e a partida entre Botvinnik e Fischer teve que ser exposta na rua, em um tabuleiro mural.
Quando no lance 68 Botvinnik jogou Rg1 e o empate foi decretado, “Fischer apertou minha mão com uma cara branca como papel, e deixou o salão com lágrimas nos olhos”, relata o soviético.
Infelizmente, esse foi o único duelo entre o 6º e o 11º campeão mundial. De um lado, Fischer (com 19 anos) seguia em plena ascensão e já acreditava ser o melhor enxadrista do mundo, causando grande expectativa no ocidente. De outro, aos 51 anos, Botvinnik também estava preparado para a luta.
Porém, quem brilhou neste duelo de titãs foi outro lendário enxadrista: Efim Geller…
Imagem 1: Fischer x Botvinnik; Imagem 2: Fischer desolado após o resultado; Imagem 3: Geller vibra com Botvinnik
Após o lance 45.a4, o tempo de jogo terminou e a partida foi suspensa para continuar no dia seguinte. Botvinnik omitiu um simples sacrifício de dama no lance 17 e, com um peão a menos, estava prestes a ser derrotado.
“Um especialista na área de finais da categoria de Capablanca ou Smyslov… já teria decidido o resultado da batalha”, apontou Botvinnik.
De qualquer maneira, Fischer selou o próximo movimento e ambos saíram de cena.
Partidas Adiadas
Antes da era dos computadores, as partidas tinham um limite de duração e caso não terminassem dentro do tempo estipulado, eram postergadas para o dia seguinte.
Quando isso acontecia, o jogador da vez deveria anotar seu lance na planilha, colocá-la dentro de um envelope junto com a planilha do adversário, lacrá-lo, e parar o relógio.
No dia seguinte, no horário marcado, o árbitro surge com o envelope, abre e revela o lance selado para que a partida continue.
Caso o lance selado seja um lance ilegal, esteja em uma anotação ambígua ou ilegível, o enxadrista que anotou de mau jeito perde a partida.
É lógico pensar que os jogadores passavam parte da noite analisando a posição com treinadores, outros enxadristas, a fim de descobrir a melhor variante.
Hoje, com apenas alguns cliques, tudo (ou quase tudo) estaria revelado. Por essa razão, a regra das partidas adiadas deixou de existir nas últimas décadas.
A Ideia de Geller e o crepúsculo de Botvinnik
No hotel da delegação soviética, a grande questão era: Botvinnik ainda pode se salvar?
“Depois do jantar iniciei as análises noturnas mais longas da minha carreira. O futuro parecia sombrio até Geller encontrar a peculiar ideia de contrajogo com 46. Tf7, Ta5 47.Txh7!! Quando tarde da noite ele me deixou, restava somente trabalhar os detalhes deste achado…”, conta Botvinnik.
Ao invés de defender o peão da coluna a, as brancas colocaram a torre na sétima e capturaram o peão de h7. Uma ideia difícil e pouco intuitiva
Em realidade, o próprio Botvinnik se impressionou com a rapidez da descoberta de Geller. “A ideia em si foi encontrada de forma incrivelmente rápida por Geller no restaurante, durante o jantar, mas sua aplicação provou ser um assunto bastante tortuoso.
Somente às 3h da madrugada foi encontrada uma continuação lógica para as pretas, e às 4h30 um astuto sacrifício de peão, a única forma das brancas salvarem a partida. O capitão do time, Furman, só me deixou às 5h30 da manhã…” (Botvinnik).
A versão de Tal
Mikhail Tal também deu detalhes sobre este momento incrível da história do xadrez.
“Pra mim este foi o momento mais memorável daquela olimpíada. Boleslavsky, Spassky e eu colocamos a posição em nosso quarto e analisamos durante quase toda a noite. Nós três estávamos no andar de baixo, enquanto Botvinnik, Geller, Keres e Furman estavam no andar de cima.
De tempos em tempos os mais jovens – Spassky e eu – nos revezávamos para subir e trocar conclusões. Perto das 5h da manhã a fantástica ideia de Geller (de lutar com dois peões isolados contra dois peões unidos num final de torres) parecia totalmente trabalhada, e decidimos que as chances de empate eram consideráveis” (Tal).
Último ato
Quando a partida retomou, Fischer mostrou-se surpreendido pela ideia defensiva e também pelo lance 52.h5!, que iguala a posição e fecha com chave de ouro a ideia de Geller. Bobby ficou tão envergonhado por não vencer o final que, na última rodada, perdeu uma posição esmagadora contra Gligoric e o time dos EUA ficou fora do pódio.
Txg6 era o lance natural, mas perde após Rd4. Porém, com o surpreendente h5!, o cenário muda
Segundo Kasparov, “este famoso final teve um curioso efeito sobre o mundo do xadrez. O prestígio de Fischer era tão grande que no Ocidente se falava sem parar de um match especial com Botvinnik pelo Campeonato Mundial. Mas depois de Bobby ter deixado a vitória escapar nesta partida, ele perdeu parte do seu encanto e desapareceu de cena durante três anos.
[Confira todos os lances da memorável partida Fischer x Botvinnik]
Nota do GM Rafael Leitão:
Partidas adiadas ainda eram comuns quando comecei minha carreira. Lembro que no Campeonato Mundial sub-12, em 1990, joguei algumas partidas que foram adiadas.
Vários eram os problemas do adiamento. Os torneios precisavam contar com um horário reservado para isso, o que não era algo simples. Às vezes os jogadores mal tinham tempo de comer alguma coisa e já tinham que jogar a continuação da partida.
Mas o problema maior é a questão da injustiça. Foi principalmente por essa razão que as partidas adiadas foram abolidas mesmo antes da era das “engines”. O caso relatado acima, da famosa partida Botvinnik x Fischer, tem uma aura de romantismo por levar nossa imaginação à era de ouro do xadrez (na minha opinião), a década de 60.
Mas que flagrante injustiça que um dos lados tenha a ajuda de um time de analistas do porte de Tal, Geller, Spassky, Keres, Boleslavsky e Furman, enquanto o outro estava quase só. Afinal Fischer não tinha enxadristas tão fortes o ajudando e, mesmo se tivesse, nem olharia as análises. Ele era um lobo solitário.
É famosa história de uma partida adiada que Fischer passou a noite inteira analisando. De manhã cedo o seu analista no torneio (um dos irmãos Byrne, não lembro qual deles), bateu na sua porta para mostrar as análises que tinha feito durante a madrugada. A resposta de Fischer foi algo do tipo: “Obrigado, mas me mostra depois que a partida terminar”.
Você é do tempo das partidas adiadas? Chegou a jogar alguma? Conte nos comentários..
Texto escrito pelo MF William Ferreira da Cruz
Referência Bibliográfica: Meus Grandes Predecessores – Volume 2 (Garry Kasparov)
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