Artigo escrito pelo GM Rafael Leitão
Todo enxadrista gosta de ver partidas com sacrifícios espetaculares e caçadas ao rei. Quem não admira aquele jogador que não tem medo de tomar riscos e que está sempre pronto para o tudo ou nada?
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É parecido com o futebol: quem não gosta das equipes que jogam e deixam jogar, que levam muitos gols mas que fazem ainda mais? O povo gosta é de 4×3 e não de 1×0.
Essas equipes nem sempre são as campeãs. Aliás, geralmente não ganham nada. No xadrez também é difícil ganhar torneios jogando sempre assim. Por isso que eu tenho uma admiração ainda maior por esse tipo de jogador.
E tem mais, eu tenho uma grande fascínio por esses enxadristas justamente porque isso é tão difícil pra mim. Os meus jogadores modelo sempre foram Capablanca e Karpov. Xadrez técnico, sólido, sutil. Jogar no ataque sacrificando todas as peças é algo que está fora do meu alcance. Eu só olho e bato palmas.
Esse artigo é uma homenagem aos enxadristas mais destemidos da história. Os suicidas. Os sanguinários. Eles preferem arriscar um ataque de mate do que jogar um final com peão a mais.
Alguns tiveram mais sucesso que outros. Mas, na minha lista, eles não são medidos por títulos e sim por seu grau de brutalidade. Eis a minha lista com os jogadores mais sanguinários da história do xadrez:
Sanguinário #5 Albin Planinc (1944-2008)
Planinc olhando fixamente para o rei adversário
Talvez o jogador menos conhecido da lista, Albin Planinc foi um grande mestre esloveno de estilo implacável.
Diz a lenda que a primeira aparição de Planinc no cenário internacional ocorreu porque um dos jogadores cancelou a participação na última hora.
Os organizadores, então, convidaram nosso herói – que era totalmente desconhecido para os estrangeiros.
Mas eles conheceram a fúria silenciosa do introvertido e enigmático jovem que havia sido campeão esloveno no ano anterior.
Enquanto os jogadores passavam as manhãs se preparando, Planinc (alguns autores soletram Planinec) trabalhava no seu turno matinal em uma fábrica de bicicletas.
Mesmo assim terminou o torneio em primeiro lugar, na frente de nomes como Gligoric e Unzicker, grandes mestres já consagrados.
E Planinc tinha um estilo fora do padrão. Ele não jogava apenas para ganhar. Ele jogava para ganhar bonito – e por ataque.
Infelizmente a carreira desse gênio do ataque foi curta. Os seus colegas observavam que Planinc não participava de nenhuma atividade social durante os torneios e que era calado e andava olhando para o chão.
Para uns ele tinha um comportamento relacionado com autismo. Para outros, o problema era depressão.
O seu último torneio foi em 1979, quando já era apenas uma sombra do grande jogador que assombrou o mundo enquanto trabalhava na fábrica de bicicletas.
A posição abaixo mostra um pouco do que ele era capaz. Como você jogaria de pretas?
Jogam as pretas
Clique aqui e veja o que Planinc jogou nessa posição
Sanguinário #4 – Shakhriyar Mamedyarov
“Vem nimim”
Shakhriyar Mamedyarov é brutal. O grande mestre do Azerbaijão é o número 4 do mundo no momento que essas linhas são escritas. Mas é o número 1 no coração daqueles que gostam do xadrez destemido.
Mais do que qualquer jogador da elite, Mamedyarov é capaz de arriscar e jogar por ataque a qualquer custo. Ele é destemido.
Não é à toa que foi carinhosamente apelidado de “Lenhador” pela equipe olímpica brasileira durante o Campeonato Mundial por equipes em 2010.
O apelido foi inspirado por seu aspecto simples, com barba sempre por fazer e por sua habilidade em destroçar as posições adversários como um lenhador derruba madeira. Assim eu imagino, pelo menos – talvez a profissão de lenhador já utilize técnicas que derrubem madeira de forma sutil. Nesse caso Mame seria um lenhador das antigas.
Com ele não tem perdão: as peças vão pra cima. Quer ver um exemplo? Como você jogaria de brancas na posição abaixo? A sequência é incrível. Só um jogador com muita imaginação e sangue nos olhos poderia encontrar.
Jogam as brancas
Veja aqui como o Lenhador jogou nessa posição
Sanguinário #3 Mikhail Tal (1936-1992)
“Eu sou a lenda”
Mikhail Tal é uma lenda.
O “Mago de Riga”, enxadrista predileto de muitos. Um gênio e prodígio que podia fazer cálculos matemáticos com apenas 3 anos, tornou-se campeão mundial com 24, escreveu sobre xadrez com domínio literário inigualável e manteve-se como um dos melhores enxadristas do mundo mesmo com saúde debilitada.
Para Tal, tudo era em excesso: talento em excesso, bebida em excesso, cigarro em excesso e…ataques em excesso também.
Já foi dito que seu estilo era simples: Tal centralizava as peças, criava algum ataque e sacrificava. Se era certo ou não – ele não estava preocupado com isso.
O importante era colocar problemas para o adversário e levar a uma posição interessante. Sua confiança no cálculo era tremenda: ele sabia que poucos poderiam enfrentá-lo nesse mundo irracional.
A sua famosa frase ilustra bem o seu estilo: “Você precisa levar o oponente até uma floresta escura e profunda na qual 2+2 = 5 e o único caminho que leva à saída só tem espaço para um”.
Uma pena que sua vida em excesso tenha cobrado seu preço. Tal já tinha a saúde debilitada desde criança (e uma curiosidade: ele tinha uma deformidade congênita na mão direita, na qual tinha apenas 3 dedos).
Beber e fumar sem parar certamente não o ajudaram. Durante sua vida precisou de uma série de cirurgias. Podemos apenas imaginar o que teria acontecido se tivesse uma boa saúde. Ele poderia até jogar pior, quem sabe? Certas coisas não tem explicação.
Não me esqueço do dia em que ele morreu. Eu estava jogando o Campeonato Mundial sub-12 em Duisburg, na Alemanha. Alguns minutos antes da rodada começar foi feito um anúncio do seu falecimento. Tenho certeza que uma lágrima escorreu em muitos jovens rostos além do meu.
Imaginação, coragem, agressividade. Tudo isso pode ser visto nos melhores exemplos desse gênio. Ou poderíamos resumir, simplesmente: mágica.
Vejamos um exemplo do seu xadrez devastador: na posição do diagrama abaixo, como você jogaria de brancas?
Jogam as brancas
Clique aqui e veja o incrível lance do Mago de Riga
Sanguinário #2 Rashid Nezhmetdinov (1912 – 1974)
“Você tem coragem de olhar nos meus olhos?”
Nezhme já ganhou o status de “cult”. Garanto que muitos acreditavam que ele seria o primeiro nessa lista.
Nascido em uma cidade que hoje faz parte do Cazaquistão, Nezhme era de uma família pobre e ficou órfão cedo. Como se sabe, grandes tragédias na infância costumam desenvolver a veia artística. O xadrez era uma de suas alegrias.
Mas não a única. Nezhme também era um excelente jogador de damas e um grande matemático. A sua paixão maior, entretanto, sempre foi o xadrez, jogo que ele aprendeu olhando partidas no clube de xadrez da sua cidade.
O xadrez dele era boçal. No bom sentido. Yuri Averbakh, monstro do jogo posicional, o definiu assim: “se ele tivesse o ataque, ele podia matar qualquer um, até o Tal. Mas o meu escore com ere ele foi algo como 8,5 a 0,5, porque eu não permitia que ele tivesse um jogo ativo. Nesses casos ele começava a estragar sua posição porque começava a procurar complicações”.
Eu já passei algumas tardes olhando várias partidas do Nezhme, inclusive as suas mais grotescas. Minha impressão é que ele ficava deprimido quando as damas eram trocadas. Ele continuava tentando atacar em qualquer posição.
Mas ai de quem tentasse cruzar as espadas com ele. O Tal, como a gente sabe, não estava nem aí pra isso. Ele também não tinha medo de nada. Resultado, 3×1 pra Nezhme nos confrontos entre eles.
Ele jogou 20 partidas contra campeões mundiais e terminou com escore positivo. Mesmo assim, nunca ganhou o título de grande mestre. Só posso dizer uma coisa: ser GM naqueles tempos era muito mais difícil do que hoje…
Nosso herói produziu uma das melhores partidas da história do xadrez. Uma grandiosa e implacável caçada ao rei de um dos melhores jogadores do seu tempo. Um enxadrista muito melhor que ele, por sinal. Mas não se Nezhme estava no ataque.
Como você jogaria de pretas?
Clique aqui para ver a imortal de Nezhme – uma das melhores da história
E então, quem será o jogador de ataque que conseguiu deixar tantas mentes brilhantes para trás nessa lista?
Sanguinário #1 Dragoljub Velimirovic (1942 – 2014)
Esse simpático senhor poderia fazer mal para o rei de alguém?
Quem olha a foto deste calmo e simpático senhor à frente do tabuleiro não imagina a ferocidade com a qual ele conduzia os seus ataques.
O número 1 da lista certamente pegou muita gente de surpresa. Mas eu acho que quem joga a Siciliana e conhece o Ataque Velimirovic já esperava por isso.
Velimirovic nasceu na Sérvia e aprendeu a jogar xadrez com 7 anos, ensinado pela mãe, que era uma das melhores enxadristas da Iugoslávia.
Ele conseguiu o título de Grande Mestre em 1973, venceu o Campeonato Iugoslavo em três ocasiões e representou a equipe olímpica da Iugoslávia diversas vezes.
Mas o seu legado é muito maior do que seus títulos. Ele deixou várias obras-primas de ataque e uma grande contribuição na teoria de aberturas, com seu sistema de ataque contra a Siciliana: 1.e4 c5 2.Nf3 d6 3.d4 cxd4 4.Cxd4 Nf6 5.Cc3 Cc6 6.Bc4 e6 7.Be3 Be7 8.De2 seguido de 0-0-0 e o avanço dos peões no flanco rei. Quantas almas ingênuas não foram impiedosamente ceifadas por ele nessa abertura…
Ele foi um autêntico representante do xadrez de ataque da Iugoslávia. Quando eu penso em Trifunovic, Gligoric, Velimirovic, Ljubojevic me vêm à mente jogadores destemidos e impiedosos com a iniciativa.
Você conhece o legado desse grande enxadrista? Não se esqueça de baixar o material nesse artigo para ver minhas análises em algumas das suas melhores partidas.
Quer encarar um desafio final? Então pense como você jogaria de brancas no diagrama abaixo. Uma dica: o lance do nosso herói não foi nada delicado…
Jogam as brancas
Veja aqui como o Velimirovic jogou de brancas nessa posição
O que você achou dessa lista? Já conhecia as partidas destes grandes enxadristas? Acha que alguém ficou de fora? Mudaria a ordem? Deixe sua opinião nos comentários!
Artigo muito bom. Parabéns!
Vou compartilhar com meus alunos e amigos. Assim como na minha página no Facebook.
Forte abraço!
Excelente artigo. Faltou o Shirov.
Shirov, Morozevich e Topalov não poderiam estar na lista ?
Um jogador fantástico também foi Spiellman, que escreveu a arte do sacrifício.
Artigo muito bom. Parabéns!
Ótimo, tem outros mas destes dá uma ideia do que e jogar xadrez sem medo.
Exatamente. Esses preferiam o "matar ou morrer", não tinha meio termo.
Blackburn?
Parabéns Rafael, excelente artigo!
GM Rafael, agradeço pelo artigo. Muito interessante e instrutivo.
Obrigado!
Rafael Leitão não está faltando o Paul Morphy?