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Primeiras jogadas
Anatoly Karpov nasceu em 1951 em Zlatoust, no sudoeste da Rússia — então União Soviética. Aos 4 anos de idade o pequeno Karpov aprendeu a jogar xadrez e aos 11 já era candidato ao título de Mestre. Com tanto talento se mostrando desde cedo no menino, aos 12 anos ele foi aceito na escola de xadrez do então campeão mundial Mikhail Botvinnik.
Com a ajuda desse tutor tão prestigiado, Karpov aprimorou consideravelmente seus conhecimentos e habilidades no xadrez até conquistar o título de Mestre Nacional em 1966, aos 15 anos de idade, batendo o recorde estabelecido antes por Boris Spassky.
Formação e obtenção do título de GM
Já vimos como xadrez e matemática estão intimamente relacionados e não é por acaso que, depois de ganhar medalha de ouro na escola pelo seu desempenho exemplar, Anatoly Karpov decidiu estudar Matemática na Universidade de Moscou. Porém, para ficar mais próximo de seu então tutor, o GM Semyon Furman, Karpov teve que se transferir para a Universidade de Leningrado (hoje São Petesburgo) e acabou formando-se em Economia.
Mas a mudança valeu a pena. Em 1969 Karpov se tornou o segundo garoto soviético (mais uma vez, na trilha de Boris Spassky) a vencer o Campeonato Mundial Juvenil de Xadrez, e em 1970 conquistou o título de Grande Mestre, ao terminar em quarto lugar em um torneio internacional disputado em Caracas, na Venezuela.
Da Rússia para o mundo
A partir daí, Karpov continuou competindo em torneios da então União Soviética até conseguir se classificar, em 1974, para o Torneio de Candidatos, em que iria disputar a chance de desafiar o então campeão mundial Bobby Fischer.
Durante as preliminares do torneio, Karpov derrotou o GM russo Lev Polugaevsky e preparou-se para enfrentar o ex-campeão mundial Boris Spassky na semifinal. Karpov começou desanimado, certo de que, sedento de reaver seu título de campeão contra Bobby Fischer, Spassky venceria, mas o enxadrista mais jovem acabou vencendo com jogadas agressivas e precisas. A disputadíssima final de Karpov contra o veterano Viktor Korchnoi foi jogada em Moscou e, em uma série de 19 partidas, teve 12 empates, terminando com 3 vitórias para Karpov e 2 para Korchnoi.
O jogo de Karpov neste ciclo de Candidatos já preconizava o seu longo domínio. Suas partidas, especialmente no match contra Spassky, foram de altíssimo nível. Para se ter ideia, Botvinnik editou um livro apenas com as partidas de Karpov nestes matches.
Vencedor do Torneio de Candidatos, Karpov se preparava para enfrentar o então campeão Bobby Fischer em Manila, nas Filipinas. O problema é que esse encontro tão esperado por todos acabou nunca acontecendo! Isso porque Fischer queria que a disputa fosse decidida por quem vencesse 10 partidas primeiro, sem contar os empates, e que o título fosse mantido por ele caso os jogadores ganhassem 9 partidas cada. Só que a FIDE não concordou com essas regras e, depois que Fischer se recusou a jogar segundo a proposta da Federação em 1974, destituiu o enxadrista estadunidense do título para dá-lo ao jovem Anatoly Karpov. Uma reviravolta mirabolante, não é mesmo? Até hoje muitos enxadristas imaginam o que teria acontecido caso Karpov e Fischer tivessem duelado em 1974.
O longo reinado de Anatoly Karpov
Mas se você pensa que, só porque “ganhou” o título de campeão mundial sem enfrentar Bobby Fischer, Karpov não era digno dessa honraria, pense de novo: depois dessa confusão toda, o jovem soviético ganhou praticamente todos os grandes torneios entre 1975 e 1985 e conseguiu manter a “coroa” por todo esse tempo.
Vencendo grandes enxadristas do mundo todo, um atrás do outro, Anatoly Karpov chegou a bater o recorde de maior número de vitórias consecutivas em torneios. Durante esse período, talvez seu oponente mais desafiador tenha sido Viktor Korchnoi — aquele que foi derrotado com dificuldade por Karpov na final do Torneio de Candidatos em 1974. Para se ter uma ideia, a primeira derrota de Karpov depois de suas recordistas 9 vitórias seguidas foi justamente contra Korchnoi, em 1978. Mas para mostrar que aprende com seus erros, Karpov derrotou Korchnoi com peso em 1981, depois que o veterano conquistou o Torneio de Candidatos e, assim, a chance de enfrentar o campeão mundial.
Um novo adversário
Quem também já vinha seguindo de perto os passos campeão Karpov era o enxadrista 8 anos mais jovem e também da União Soviética, Garry Kasparov. No Campeonato Mundial de Xadrez de 1984, realizado em Moscou, Kasparov já mostrou sua força ao conquistar simplesmente 40 empates contra Karpov em uma disputa que durou 5 meses e resultou em 5 vitórias do campeão mundial contra 3 do candidato. Vale ressaltar que a batalha só foi encerrada por insistência do então presidente da FIDE, Florencio Campomanes, que na 48ª partida já estava começando a ficar preocupado com a saúde dos dois enxadristas.
Depois dessa verdadeira maratona, a Federação se viu obrigada a voltar às suas antigas regras, em que a disputa se limitaria a 24 partidas, com o campeão retendo o título no caso de empate 12-12. Na revanche, em 1985, Garry Kasparov finalmente conseguiu derrotar Anatoly Karpov por apertados 13-11, tornando-se então campeão mundial.
A rivalidade entre esses dois grandes enxadristas soviéticos, no entanto, não acabou por aí: mesmo sem a coroa de campeão mundial, Karpov continuou jogando e chegou a enfrentar Kasparov em três outras disputas emocionantes até 1993, quando Garry Kasparov se desligou da FIDE, transferindo seu título automaticamente para o ex-campeão, Anatoly Karpov.
Talvez a última disputa entre ambos os jogadores no auge da forma tenha acontecido em 1994, no Torneio Internacional de Linares, que contou com enxadristas de uma força sem precedentes. Diante do grande número de GMs poderosos se enfrentando nessa ocasião, Garry Kasparov comentou que o vencedor dessa disputa poderia realmente ser considerado um verdadeiro campeão mundial. Talvez para provar seu valor diante do arquirrival, Anatoly Karpov jogou de maneira espetacular e, claro, venceu o torneio! Sua performance foi tão incrível que ele atingiu o maior rating performance até então: 2985. Esse recorde só viria a ser batido em 2009 pelo nosso atual campeão mundial, o jovem prodígio norueguês Magnus Carlsen, que obteve uma performance de 3002 pontos.
Rumo à aposentadoria
Foi somente no Campeonato Mundial de 1999, depois que a FIDE mudou as regras do torneio, exigindo que o campeão se classificasse junto com outros enxadristas, que Anatoly Karpov, tendo reinado por mais de 16 anos não consecutivos, desistiu de seu título, recusando-se a participar da competição.
Com a impressionante história de Anatoly Karpov, podemos aprender a nunca subestimar nossos adversários, a não deixar que um título nos faça acreditar que não precisamos mais nos esforçar, e a não negligenciar os finais das nossas partidas — esse era, aliás, um dos diferenciais desse grande enxadrista.
Clique aqui e veja uma das melhores partidas desse brilhante jogador, com as análises do GM Rafael Leitão!
Relato pessoal do GM Rafael Leitão
“Tive a honra de conhecer, enfrentar e conversar com o Karpov em diversas ocasiões. Ele é uma pessoa absurdamente culta e capaz de discutir sobre qualquer assunto. Devemos acrescentar que xadrez não é a única de suas paixões: sua biblioteca de livros de xadrez é a maior da Rússia, ele é colecionador de selos (sua coleção vale uma fortuna) e domina outros jogos, como gamão e bridge.
Além disso, ele é um conversador nato. Esqueça a ideia do russo fechado, introvertido. Ele é capaz de falar horas seguidas, sobre qualquer assunto. Quando esteve no Brasil não se conteve nas caipirinhas e foi sempre bastante simpático.
Sua avareza também é histórica. Dizem que é mais fácil chover canivete que ser convidado para um café com o velho Tolya. A lenda conta que certa vez trancou com um cadeado o frigobar do seu analista, Podgaets, porque este estava se excedendo (na visão do Karpov, é claro).
Durante uma das nossas conversas, tive coragem e perguntei para Karpov quem venceria em 74: ele ou Fischer? Sempre muito otimista, ele me disse que Fischer seria ligeiramente favorito, talvez com 60% de chances. Mas, sinceramente, neste ponto concordo com Korchnoi. Quando perguntado, há muitos anos, se em 1978 ele ou Karpov teriam chance contra Fischer, ele respondeu: ‘ele venceria mesmo se jogasse com nós dois ao mesmo tempo!’
Felizmente, meu escore contra Karpov não é nada mau: joguei uma partida em ritmo convencional em Buenos Aires, em 2000, que terminou empatada; já em 2004, jogamos duas partidas rápidas, eu venci a primeira e empatamos a segunda. No entanto, as habilidades de Karpov jogando blitz, que são lendárias, pude descobrir da forma mais dolorosa possível. Em 2006 joguei uma tarde inteira com ele, sendo verdadeiramente massacrado. Ele reiterou o que eu já sabia, que Tal era extremamente forte jogando blitz, mas me surpreendeu ao afirmar que Botvnnik não gostava de jogar blitz porque era muito fraco nessa modalidade”.
Longa vida ao grande campeão, que até hoje segue disputando partidas amistosas e nos brinda com sua classe, que não tem idade.
E você, o que mais acha que podemos aprender com Karpov? Comente contando o que achou dessa trajetória fascinante e aproveite para ler também sobre a vida de Boris Spassky, outro ex-campeão mundial russo!
Excelente artigo Rafael, e merecida homenagem a este grande campeão mundial, não tenho dúvidas que senão tivesse Kasparov em seu caminho, bateria 2 décadas com a coroa do xadrez em suas mãos. Adalberto Junior
transição de meio para o final era perfeita alem de ser uns dos maiores especialista de final !!!!!!!
Obrigado, Adalberto! Realmente Karpov foi um monstro.
Com certeza um dos 3 melhores jogadores de finais de todos os tempos.
Quem seriam os outros dois?
Capablanca e Rubinstein?
Rafael Leitão, bom dia. Poderia passar uma orientação? Gostaria de saber, em porcentagem, como estudar para ter-se uma boa performance: 1) aberturas; 2) meio jogo (táticas) e 3) finais.
Karpov joga um excelente blitz, mas curiosamente tem 2600 de blitz, enquanto Carlsen e Nakamura ja beiram os 2900. Pela sua força (karpov) já deveria pelo menos estar bem próximo aos jovens enxadristas...
O Karpov atualmente é um senhor com mais de 60 anos. Como poderia fazer frente a jovens de menos de 30?
GENIO SIMPLESMENTE GENIO
Uma verdadeira honra poder privar com Campeão!
Que bom termos um relato de experiência pessoal Rafael!
Aprender a estudar, analisar, se empenhar e nunca desistir...
Aprender que podemos ser agradáveis, mesmo com nossas manias...
Cultura!
Parabéns!
O Karpov tem muito a ensinar: sobre finais, jogar com as negras. A trajetória dele foi fantástica, um dos maiores enxadristas de todos os tempos.
Ahhh esses russos, como está "o seu russo" em Rafael Leitão? (no bom sentido kkk) Tem 5 russos enxadristas pra cada jogador de xadrez soviético...kkk. Me parece que na Rússia eles tem no currículo escolar a matéria "xadrez", não é à toa que são considerados os melhores do mundo e um dos países que mais produzem gênios: literários, científicos, artísticos, músicos... sabem usar a sua "mente".
Entendo, humildemente é claro, que se não disse afastado como foi, e, posteriormente pela doença que o incapacitou, Bob Fischer seria o maior da história mundial, respeitando é claro, karpov e Kasparov. Minha humilde opinião...
Marcou a história do xadrez. Outro enxadrista teria sucumbido ao peso da sombra que Ficher deixou. Respondeu ao desafio fantasticamente. E lembremos que ele enfrentou Kasparov com igualdade no auge do Ogro de Baku.
Rafael me diga por favor qual p livro do Karpov que você recomenda e em relação ao jogo dele o que mais impressiona é o seu sistema defensivo ou eu estou enganado ? Muito obrigado
Muito bons jogos
os seus jogos impressionam-me