Duas Semanas em Moscou

    Este artigo foi escrito originalmente em 2002, pouco tempo depois da minha visita à mítica (para enxadristas, ao menos) cidade de Moscou. Revisitando minhas palavras à época, é possível ver ainda o encantamento com o descobrimento da tão falada “Escola Soviética” de xadrez, mesmo que fosse uma pequena parte dela.

    Muito aconteceu desde então na minha carreira enxadrística. Mas os fundamentos construídos com base nessa corajosa viagem ainda são notáveis tanto no meu jogo quanto na minha visão de como o xadrez deve ser ensinado. Toda a filosofia de ensino que desenvolvi posteriormente é baseada nestes mesmos pilares.

    Edições feitas na nova versão do texto são destacadas em azul. Espero que esse relato possa inspirar as pessoas que amam o xadrez.

    GM Rafael Leitão, 2016.

     

    Duas Semanas em Moscou
    Conheci Mark Dvoretsky em maio do ano passado. Eu voltava de um torneio na Sibéria com o GM chileno Ivan Morovic, e tinha um dia livre em Moscou antes de meu vôo (quanto tempo se passou! Como sabemos, hoje em dia esta palavra não é mais acentuada) para o Brasil. Durante um passeio pela Praça Vermelha, sugeri a Ivan que ligássemos para o famoso treinador, considerado por muitos o melhor do mundo, que teve como discípulos três aspirantes ao título mundial (Yusupov, Dolmatov e Dreev), e que atualmente trabalha com os GMs Bologan e Zvjaginsev. (Somente depois descobri que ele também já treinava o jovem Ernesto Inarkiev, que eu viria a enfrentar em 2013, na Copa do Mundo. Outros tantos super GMs, do presente e do passado, também já treinaram com Mark).

    Chegamos ao apartamento de Mark por volta das quatro da tarde. Era para ser um breve encontro, mas ficamos tão impressionados com o que vimos (entre outras coisas cerca de três mil cartões de exercícios, com diagramas desenhados, e organizados por temas) que não conseguimos deixá-lo antes da meia-noite. Desde então comecei a idealizar a minha volta à Meca do xadrez, para conhecer mais de perto os segredos do treinamento russo. Aproximadamente um ano depois, de 4 a 18 deste mês (recordo isso aconteceu antes da Copa do Mundo de futebol. Lembro de ter assistido a final da Champions League, Real Madrid e Juventus – gol antológico de Zidane, em um bar com Peter Nielsen e Viktor Bologan), consegui realizar este sonho, após várias trocas de e-mails com Mark e outros grandes mestres interessados.

    Após uma exaustiva viagem, instalei-me em um confortável apartamento de dois quartos, que Mark generosamente oferece aos enxadristas que desejam visitá-lo. Além disso, o ameno clima de primavera na capital russa propiciava as condições ideais para duas semanas de intenso desenvolvimento enxadrístico.

    O forte e simpático GM dinamarquês Peter Nielsen acompanhou-me nesta jornada (Morovic não pôde ir pois disputava um torneio na mesma data). O qualitativo “forte” serve não somente às excelentes qualidades enxadrísticas de Peter, mas também porque do alto de seus dois metros de altura ele é uma autêntica muralha, por sinal extremamente útil no dia em que jogamos basquete com os amigos do filho do Dvoretsky! (Peter pouco tempo depois começou a trabalhar como analista do Anand. Hoje em dia ele trabalha exclusivamente como analista do Campeão Mundial, Magnus Carlsen). Assim, durante quatro horas diárias (sem contar os “deveres de casa”), durante quatorze dias, concentrei-me em melhorar minha técnica nos finais de jogo.

    O que dizer sobre Dvoretsky? Uma pessoa extremamente simpática e culta, que pode discorrer sobre vários assuntos com a mesma destreza. Durante a pausa para o almoço, Mark falava sobre a história dos conflitos no Oriente Médio, a fase negra do Comunismo na ex-União Soviética, e – meu tema predileto – contava várias anedotas sobre os super GMs que conheceu. É muito fácil perceber sua paixão pelo xadrez e o orgulho que tem por seus originais e eficazes métodos de treinamento.

    Para ajudar-lhes a ter uma idéia (acento obsoleto, novamente!) do nível de alguns dos exercícios, apresento a seguinte posição. De antemão aviso que a resposta é praticamente insolúvel e é uma amostra de como o xadrez é profundo:

    Brancas: Rh2, Dh1, Be3, h3, f5, f2, c3, b4

    Pretas: Rf7, Dd3, Ch4, h6, g5, d5, c7

    Timman – Kasparov , 1984 ( jogam as pretas )

    (Na versão original do artigo não havia diagrama)

    TimmanxKaspa

    Dvoretsky nos mostrou este exemplo em um dos últimos dias, quando estudávamos como converter posições vantajosas. Após arrumar as peças, Mark nos perguntou como jogaríamos, e tranqüilamente (com trema no original…) começou a ler um livro enquanto esperava alguma resposta. As pretas têm clara vantagem, mas devem escolher uma continuação que limite ao máximo as opções brancas. A primeira variante que analisei foi o natural 49. …Dxf5, mas a réplica 50.Dd1 me desagradava. Peter Nielsen sugeriu 49. …h5, mas quando lhe perguntei o que jogaria contra 50.c4!, ficou claro (ainda mais pela expressão do Dvoretsky!) que as brancas têm contra-jogo. O tempo passava e como eu não tinha idéia melhor, sugeri – um tanto acanhado – a jogada 49. …Cxf5 (por sinal esta foi a escolha do Kaspa), mas Dvoretsky rapidamente nos convenceu de que as brancas obtêm chances após 50.Bd4! c6 51.Da1. De fato, a partida terminou em empate alguns lances mais tarde. Já olhávamos esta posição por uns 40 minutos, quando finalmente Mark resolveu dar uma dica e nos perguntou como jogaríamos com as brancas! Imediatamente ficou claro que a solução é simplesmente passar o lance para o adversário, que não têm jogadas úteis. As pretas devem jogar o espetacular 49… Rg8!!.

    Em suma, estas duas semanas foram uma experiência muito proveitosa, e – melhor ainda – prazerosa. Gostaria de registrar meu agradecimento à família Dvoretsky, por sua hospitalidade, e a empresa Schahin, cujo patrocínio foi essencial para que eu realizasse esta viagem.

    (Em 2006 a CBX patrocinou um treinamento da Equipe Olímpica brasileiro em Foz do Iguaçu com “Dvora”. Ele escreveu algumas linhas sobre o trabalho que fizemos em sua recente biografia For Friends and Colleagues, Vol. II).

     

    GM Rafael Leitão, 2002.

     

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    3 Responder para “Duas Semanas em Moscou”

    • Dglm007

      Inspirador Mestre. Excelente artigo. Parabéns por ter tido a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente.

    • Luan Araújo

      Joguei Peter Nielsen no google e achei um jogador de futebol ....

    • Luan Araújo

      Exercício muito top.... Poderia mostrar aos leitores mais alguns exercício que o Dvorestky lhe mostrou ?

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