Resenha do livro: Positional Decision Making In Chess – Volume 1, de Boris Gelfand
Escrito pelo GM Rafael Leitão
A Importância dos Livros e o Entendimento Posicional
Os leitores mais frequentes do site e também os alunos da Academia já sabem que sou um adorador de livros de xadrez. Mesmo na era tecnológica, em que boa parte da preparação de um enxadrista é feita no computador (com vídeos e estudo de bases de dados), um bom livro de xadrez ainda é muito importante.
Na verdade alguns fortes enxadristas da nova geração padecem justamente desse mal: com o uso excessivo das “engines” de análise eles perdem o entendimento posicional de algumas posições. O xadrez jogado por humanos é diferente e se você não entender as sutilezas estratégicas de uma posição você não será capaz de encontrar boas jogadas, mesmo que a avaliação do computador seja favorável.
Muitos enxadristas, por sinal, levam essa avaliação da máquina quase como algo sagrado: perdi, mas o computador em certo momento me dava 0.70 de vantagem! Esqueçam isso! Mais importante que a avaliação do computador é o que você entende da posição e se ela é fácil ou difícil de ser jogada por um ser de carne e osso.
Nesta introdução falamos sobre a importância dos livros e sobre entendimento posicional. Nada melhor, então, que uma resenha de um excelente livro que pode melhorar justamente essa parte do seu xadrez. Trata-se de “Positional Decision Making In Chess”, de Boris Gelfand.
O Que Dizer Sobre Boris Gelfand?
Boris dispensa maiores apresentações. Nascido em Minsk, na Bielorrússia, em 1968, e atualmente representando Israel, Gelfand teve todo o aprendizado clássico dos jogadores soviéticos.
Isso fica claro no seu xadrez de estilo impecável, que deve ser estudado por todo enxadrista. Seu jogo é praticamente sinônimo de entendimento posicional e muitas vezes me lembra o estilo de Polugaevsky: clássico, mas com dinamismo e luta pela iniciativa. No repertório de abertura, variações de Peão Dama de brancas e, geralmente, Siciliana de pretas (nisso Gelfand é mais eclético que Poluga, que só jogava a Siciliana).
Gelfand está entre os melhores do mundo desde o início da década de 90, tendo sido campeão da Copa do Mundo em 2011, o que lhe deu o direito de enfrentar Vishy Anand pelo título de Campeão Mundial em 2012. O match foi apertado e nosso “herói” de hoje perdeu apenas nos desempates. O maior rating alcançado por Boris foi 2777 (novembro de 2013).
O Livro: Positional Decision Making In Chess
Nenhum grande mestre atual desse porte escreveu uma obra tão densa e importante quanto ele. Existem alguns livros de partidas de Kramnik, Anand e até mesmo Carlsen, mas nenhum deles realmente escreveu o livro do início ao fim, mostrando seus passos na evolução do xadrez, os temas que considera mais importantes, quem são seus ídolos. Claro que temos a coleção “Predecessores” do Kasparov, mas ele parou de jogar há algum tempo e são obras com objetivos diferentes.
A obra foi escrita em 2015 e consiste em 2 volumes: “Positional Decision Making in Chess” e “Dynamic Decision Making in Chess”. Esta resenha é sobre o “Positional”.
Informações Básicas
Para começar, algo importante para os amantes de livros, mas que talvez seja irrelevante para quem se preocupa apenas com o conteúdo, para quem compra o livro em formato digital ou, pior, para quem tenta baixar livros em PDF na internet: o livro tem capa dura, um belo trabalho editorial, tremendo bom gosto na imagem de capa e contém fotos históricas. Fará bonito em qualquer biblioteca.
Sobre o conteúdo:
São 285 páginas (incluindo os índices) e o livro é dividido nos seguintes tópicos (em tradução livre):
1- Jogando no Estilo de Akiba Rubinstein; 2- O “Aperto” ( The Squeeze); 3- Vantagem de Espaço; 4- Transformação de Estruturas de Peões; 5- Transformação de Vantagens
Ao final temos uma entrevista, concedida após o match contra Anand e intitulada: “Eu Não Posso Sair De Casa!”.
Quem Deve Estudar O Livro
Pelos tópicos já é possível notar que esse não é um livro convencional sobre estratégia. E já deixando um alerta: a obra pode (e deve) ser estudada por qualquer enxadrista, mas as ideias são bastante avançadas. A maioria dos enxadristas precisará ver e rever algumas partidas e pensar sobre os conceitos. Não é um livro com uma receita pronta, que entra por um ouvido e sai por outro, com o leitor aprendendo automaticamente os seus segredos. É um livro feito para quem quer pensar e realmente evoluir – e ele é absolutamente perfeito para isso.
Vejamos o que mais me chamou a atenção sobre o livro e a visão de Gelfand sobre o xadrez.
1- A Adoração Por Rubinstein e a Importância dos Clássicos.
Como mencionei antes, Gelfand foi formado na “Escola Soviética” e sabemos a importância que é dada para o estudo dos clássicos. Eu já tinha lido que o ídolo dele era Akiba Rubinstein. Mesmo assim me surpreendeu o nível de adoração de Gelfand por seu “mestre”.
Vamos examinar algumas ideias do Gelfand sobre os clássicos:
- Sobre Karl Schlechter: “Ele era um jogador muito forte, apenas a um empate de tirar a coroa de Lasker no Campeonato Mundial de 1910 (é controverso se ele precisava vencer por dois pontos. Meu conselho é não acreditar na Wikipedia sobre isso: ninguém sabe de verdade)”.
Eu adoro comentários desse tipo. Sou fascinado pela história do xadrez e Boris sabe tudo sobre isso.
- “…é muito útil conhecer muitas partidas clássicas e planos clássicos. Você nunca sabe quando esses padrões serão úteis em suas próprias partidas”.
Exatamente como eu penso o xadrez. Sempre falo da importância dos clássicos e do reconhecimento de padrões.
- “Em geral eu gostaria de adicionar que acredito firmemente no valor de uma educação enxadrística construída com profundo conhecimento dos clássicos. Qualquer tentativa de emular as “engines” e suas 2.000.000 jogadas por segundo está fadada ao fracasso”.
Perfeito! Se ao menos alguns jogadores da nova geração escutassem isso…
- “O motivo pelo qual muitos treinadores recomendam o estudo das melhores partidas de jogadores tão diversos quanto Capablanca, Alekhine, Tal, Petrosian etc., é que todos eles brilhavam em posições diferentes e deve ser nosso objetivo aprender a jogar todas elas da melhor forma possível.
Estudar as partidas dos Campeões Mundiais é fundamental para ter uma melhor compreensão do xadrez.
- “Conhecimento de partidas dos mestres do passado é sempre útil e, mesmo sem se dar conta, você pode repetir ideias que viu nessas partidas”.
O estudo dos clássicos irá ajudá-lo a reconhecer padrões e tomar melhores decisões durante a partida.
2- Gelfand e o Uso de Engines
Os conselhos sobre como usar o computador e não deixar que as engines pensem por você são espetaculares. Vejamos alguns:
- “Se você realmente ama e aprecia o xadrez, eu recomendo que siga partidas online sem a engine ligada, como eu faço”.
Esse conselho eu passo para os meus alunos e já havia mencionado em minhas palestras. Qual o sentido de olhar partidas online se você quer apenas ver os lances e avaliações do computador? Tente olhar as partidas e tentar antecipar quais jogadas serão feitas – essa é a forma correta de ver partidas, se divertir e ainda melhorar o seu xadrez.
- “O difícil no xadrez é entender a importância dos elementos da posição antes de saber o que o computador acha que é o melhor”!
Antes de saber a avaliação do computador, sempre pense sobre qual lado tem vantagem. Você preferia estar de brancas ou de pretas? Avalie e pense um pouco sobre a posição antes de cair na tentação de perguntar para o computador.
- “Xadrez é um jogo e sua dimensão prática não deve ser subestimada. A avaliação de posição agradável/desagradável é mais útil que 0.73 ou outra avaliação qualquer da máquina. A posição é difícil de jogar na prática? Isso que vai determinar o resultado, mais do que qualquer avaliação de computador”.
Alguns enxadristas só pensam agora em termos de avaliação de computador. A máquina me dá 0.60, dizem eles, sem nem saber o que isso significa. Muito mais importante é o “fator humano” (ainda escreverei um post separado sobre isso), que indica se a posição é fácil ou difícil de jogar na prática. Afinal, ao menos por enquanto, nossos adversários ainda são de carne e osso.
3- Planos, Elementos Posicionais e Reconhecimento de Padrões
Enxadristas que não sabem quais os elementos posicionais mais importantes e têm dificuldades para encontrar planos durante a partida, encontrarão muitas páginas de sabedoria no livro. Vejamos algumas delas:
- “Quando você tiver feito o “upload” de muitos padrões enxadrísticos para o seu cérebro durante a infância, você geralmente terá uma grande suspeita a respeito de qual o lance correto em uma posição, apesar de não ter ideia do porquê…”
Exatamente! Eu apenas acrescento que isso não precisa ser feito especificamente durante a infância. Naturalmente Gelfand se refere a jogadores que tentam ser os melhores do mundo. Mas estudar partidas e reconhecer padrões é algo que pode ser feito a qualquer tempo (quanto antes, melhor).
- “Vantagem estática: uma vantagem que tem uma qualidade duradoura. Pode ser uma melhor estrutura, mais espaço, vantagem material, bispo contra cavalo e por aí vai. Vantagens que continuarão depois de 10 lances, a não ser que algo drástico aconteça”.
- “Vantagem dinâmica: uma vantagem que depende de tempo. A mais simples é uma vantagem no desenvolvimento das peças. Também temos o ataque ao rei e a iniciativa em geral. Vantagens dinâmicas são instáveis. O ataque pode desaparecer rapidamente se, por exemplo, o atacante é precipitado em sua execução”.
Em meus cursos sobre jogo posicional sempre menciono a importância de reconhecer os elementos estáticos e dinâmicos da posição.
4- Comentários Sobre Enxadristas Famosos
As impressões de Gelfand sobre enxadristas também são muito divertidas. Minhas prediletas:
- “…uma partida de Leonid Stein, um jogador que eu admiro muito. Ele faleceu em 1973, com apenas 38 anos, em circunstâncias trágicas. Em suas melhores partidas podemos ver como essa perda foi grande. Ele era um jogador realmente fantástico”.
Stein é um dos meus jogadores favoritos e até escrevi um artigo sobre sua vida.
- Sobre Levon Aronian: “Eu o considero o jogador mais criativo dos nossos tempos, tanto no tabuleiro quanto na preparação de abertura. Quando lemos enxadristas antigos reclamando que os jovens só sabem apertar a tecla “espaço” do computador e não tem cultura, apenas pense no Aronian. Ele tem grande conhecimento de música, literatura, artes e cultura em geral.
E, finalmente, para ele quem é o melhor enxadrista de todos os tempos?
- “Garry Kasparov é provavelmente o melhor enxadrista de todos os tempos”
Os Melhores Exemplos
Nesta parte final do artigo, veremos algumas das melhores posições do livro. Para explicações mais detalhadas sobre as posições, não se esqueça de baixar a base de dados ao final do artigo.
Gelfand x Wang Yue (Medias 2010). Jogam as brancas
Esta é uma das melhores partidas de Gelfand e o lance na posição do diagrama é realmente impressionante. Como você jogaria de brancas?
A resposta é impressionante: 48.Ch8!! e as brancas conseguem quebrar a resistência das pretas.
Rubinstein x Nimzowitsch (Berlin 1928). Jogam as brancas
Um clássico exemplo de transformação posicional. Como você jogaria de brancas?
Geralmente queremos o par de bispos, mas a solução nesse caso é transformar a vantagem: 28.Bxf6!! Dxf6 29.Ce4 Dh6 30.f5 e as brancas melhoraram sua posição, ganharam mais espaço e estão prontas para atacar o peão de d6 e explorar a dama das pretas mal colocada em h6.
Algo importante do livro é que apesar de sua adoração pelos clássicos e, principalmente, por seu ídolo Rubinstein, Gelfand não os coloca no pedestal de mitos que não podem ser criticados, como muitos fazem. Um bom exemplo é a análise da parte final da partida Rubinstein x Alekhine (Karlsbad 1911), mostrada em muitos livros antigos como um exemplo de boa técnica. Em suas análises, Boris não poupa críticas para o jogo de ambos. Chega inclusive a chamar o lance 57 de Alekhine de “horrendous blunder”.
Rubinstein x Alekhine (Karlsbad 1911). Como você jogaria de pretas?
Alekhine jogou 57…Txb5?? (57…Re6! salvaria a partida). Depois de 58.Txa7+ Rd6 59.Rxg6 as brancas venceram facilmente.
E, para encerrar, como você jogaria de brancas na posição do diagrama abaixo?
Gelfand x Rublevsky (Palma de Mallorca 2008). Jogam as brancas.
17.h3!
Uma excelente jogada posicional. Deixo a explicação para o autor: “Uma melhora natural da posição, que pode ser útil de muitas formas. As brancas podem considerar g2-g4, mas além disso simplesmente não querem levar mate na primeira fila ou temas com …Cg4. Tudo isso parece simples e lógico com essa descrição, mas precisei de 25 minutos para me decidir por essa jogada!”
Conclusão
Um livro espetacular para quem quer melhorar o entendimento do jogo posicional. Mais recomendado para enxadristas acima de 1800, especialmente aqueles que têm mais de 2200 e querem alcançar o título de mestre.
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