O Dia Que Spassky Chorou

    Boris Spassky é conhecido pela frieza e por não ter medo de ninguém. Considerado um enxadrista universal, isto é, que jogava bem qualquer tipo de posição, seja de defesa, de ataque, de compensação por material sacrificado ou um final técnico. A única crítica que a ele se faz, se é que esse é o termo certo, é que sua inabalável confiança fazia com que ele não se esforçasse tanto quanto outros enxadristas, sendo até mesmo chamado de “preguiçoso” pelos mais críticos e que gostam de dar nome aos bois. Karpov, por exemplo, que o ajudou durante a preparação para o match original contra Fischer, disse que ele preferia jogar tênis do que se engajar em análises tediosas de abertura. Por essas e outras ele também ficou conhecido como um “bon-vivant”.

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    Durante sua carreira enfrentou diversos obstáculos, dentro e fora do tabuleiro. Sobrevivente do Cerco de Leningrado, evento que deixou profundas marcas na sua personalidade, teve que resistir no tabuleiro a jogadores de ataque como Tal, Stein, Fischer e tantos outros, mas como eles iriam assustar quem viu a fome de perto e evitou o suicídio da própria mãe quando contava tão somente seis anos? Parece que apenas uma coisa o assustou e o fez chorar, como veremos no relato a seguir.

     

    Spassky e Tigran Petrosian se enfrentaram em dois matches pelo título mundial, ambos muito acirrados. O primeiro duelo ocorreu em 1966 e terminou com o placar de 12,5 a 11,5 para Tigran. Naquela época, os desafiantes eram decididos em um longo processo: primeiro era preciso se classificar para a fase dos matches (uma sequência de partidas contra um mesmo adversário), que começava nas quartas de final. Vencidos os três matches, finalmente chegava a hora de enfrentar o campeão mundial, que enquanto isso ficava aguardando tudo tomando seu cafezinho ou, mais provavelmente, vodca, enquanto se divertia vendo os desafiantes cortarem suas cabeças no caminho. Além disso, o campeão mundial jogava pelo empate de 12 a 12 no duelo de 24 partidas.

     

     

    A dificuldade de passar por esse processo seletivo não uma, mas duas vezes, não deve ser subestimada. Poucos enxadristas conseguiram essa façanha, os que me vêm à memória são:

     

    Smyslov, que na primeira vez se classificou no famoso Torneio de Candidatos em Zurique 1953, na segunda vez venceu o Torneio de Candidatos em Amsterdã, 1956 (e vale lembrar que chegou na final dos matches de Candidatos em 1984, com 63 anos, e sucumbiu frente ao jovem Kasparov, então com 21 anos).

     

    Korchnoi, que desafiou Karpov oficialmente pelo título mundial duas vezes, além de outra extraoficial, já que eles não sabiam que Fischer entregaria a coroa de bandeja em 1975.

     

    Karpov, que se reergueu para desafiar Kasparov algumas vezes, quase conseguindo em uma delas.

     

    Nepomniachtchi, que recentemente venceu dois Torneios de Candidatos e tentará o terceiro em 2024. Se ele conseguir esse feito, você deve deixar todas as diferenças que com ele tiver, afinal Nepo não é um tipo conhecido por fazer amizades, e reconhecer que ele conseguiu uma das maiores proezas da história do xadrez.

     

    Em 1969 foi disputado o segundo duelo entre Petrosian e Spassky. Boris havia aprendido muito desde a difícil batalha em 1966. A campanha dele no novo ciclo de Candidatos não deixa dúvida: nas quartas de final derrotou Efim Geller por 5,5 a 2,5. Na semifinal, vitória contra Bent Larsen pelo mesmo placar. Na final, vitória contra Viktor Korchnoi por 6,5 a 3,5. Venceu todos esses duelos por uma diferença de três pontos, mostrando que estava muito à frente dos outros. Petrosian, entretanto, era um obstáculo mais difícil: um enxadrista posicional, que se defendia como ninguém, perdia poucas partidas e sabia os pontos fracos do herói dessa história.

     

    É possível afirmar que o Spassky de 1969 era uma força imparável e, verdade seja dita, um enxadrista muito mais forte do que o que perderia a coroa para Fischer três anos mais tarde. Na décima nona partida, Boris tinha o tipo de posição que gostava: suas peças estavam bem posicionadas para o ataque. Antes do vigésimo primeiro lance ele sabia que estava ganho: era impossível que as pretas pudessem se defender ali. Com 5 a 3 no marcador, o título estaria próximo.

     

    diagrama Spassky x Petrosian

    Jogam as brancas

     

    Essa posição me traz as lembranças de um treinamento que fiz em 1993 em Havana, no ISLA (Instituto Superior Latinoamericano de Ajedrez), como preparação para o Mundial sub-14 que seria realizado alguns meses depois, em Bratislava. Esse diagrama fez parte de um dos testes que eu precisei resolver como exercício de cálculo. Para ver como a partida seguiu, [ clique aqui ].

     

    Eis o relato que escutei de fonte segura há muitos anos. Depois de executar o lance vencedor, Boris foi até o banheiro e começou a chorar copiosamente. Talvez tenha se lembrado de tudo que acontecera na sua vida, de ter passado fome, das incontáveis horas estudando xadrez de madrugada, em um apartamento comunitário, da sua mãe que quase desistira de tudo. Ele sabia que de agora em diante a vida dele iria mudar para sempre e talvez não fosse para melhor.

     

    Uma coisa era ser o desafiante. Outra era ser o campeão mundial. Isso pode ser um enorme fardo e não precisamos nos transportar para a década de 60 ou 70 para imaginá-lo, já que agora, em pleno 2024, temos um campeão mundial que parece mais triste que feliz com o título. Ding Liren esteve sempre de semblante fechado e sofrendo nos torneios que jogou esse ano, depois de uma longa ausência pós-título em 2023. Sem falar no Fischer, que parou de jogar. Ou Carlsen, que abdicou da coroa, talvez uma decisão muito boa para sua qualidade de vida, ainda que muito triste para todos que amam o xadrez.

     

     

    O que Spassky fez depois de chorar em frente ao espelho do banheiro?

     

    Enxugou as lágrimas, voltou para o tabuleiro e arrematou a partida com precisão. Os verdadeiros campeões são assim – implacáveis.

    2 Responder para “O Dia Que Spassky Chorou”

    • Esau

      Ótima iniciativa

    • Lucas

      Adoro seus artigos, Rafa. Bem escritos, repletos de contextualizações, e que sempre transparecem seu amor pelo xadrez. Obrigado

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