*Escrito pelo MN Nicolau Leitão
Conta uma lenda que, certa feita, um rei havia saído para uma caçada. No descanso, enfadado, sentiu vontade de fazer algo divertido. Nada melhor que uma partida de xadrez. No entanto, nenhum de seus súditos de momento sabiam mover as peças. Não tardou e descobriram pelas redondezas um pastor de ovelhas aficionado. Sem manifestar qualquer intimidação pela coroa alheia, tratou de rapidamente suplantar o monarca de madeira, naquele que foi batizado de mate-pastor.
Uma sequência possível de lances para referida partida é:
1.e4 e5
2.Bc4 Cc6
3.Dh5
Desavisado, o rei caçador teria jogado algo como 3…d6??. Ao que o astucioso pastor de ovelhas teria respondido: 4.Dxf7#!
Aproveitamos para oferecer alguns conselhos:
- Fique esperto se o seu adversário desenvolver rapidamente o bispo e a dama;
- Você tem, sempre, de estar atento aos planos do oponente;
- Cuidado com pastores de ovelhas: eles não se impressionam com coroas!
Brincadeiras à parte, somente um jogador inexperiente cai nesse tipo de armadilha. A ameaça seria facilmente defendida com 3…De7 (protegendo f7) ou 3…g6 (bloqueando a passagem da dama). No final das contas, a dama branca fica mal colocada e será obrigada a perder tempos para não ser capturada. Afinal, como ela é muito valiosa, em condições normais só se troca uma dama por outra.
Assim é que nós defendemos que você encare o jogo de xadrez de forma científica, tentando encontrar os melhores lances, considerando que o seu adversário também efetue as melhores respostas. Apostar em truquinhos pode te render pontos no início da jornada enxadrística, mas não vai contribuir a longo prazo para você melhorar o entendimento do jogo.
Portanto, o que a Academia Rafael Leitão propõe é que você jogue linhas clássicas, que não rompam com os princípios gerais do jogo (como sair prematuramente com a dama, por exemplo). Com isso, não estamos sugerindo que você decore as aberturas do Magnus Carlsen e jogue-as no piloto automático sem fazer ideia dos planos típicos das posições.
Um dos grandes diferenciais de Rafael foi o de ter estudado os campeões mundiais desde muito novo. Ainda criança, analisou todas as partidas do livro “Minhas 60 melhores partidas”, do Bobby Fischer. O pequeno Rafael passou então a emular o repertório do americano. Ou seja, ele passou a ser o seu jogador-modelo, técnica muito defendida pelo Grande Mestre maranhense.
Sim, você vai ver por aí autores batendo no peito com orgulho para dizer que nunca viram uma partida do Fischer e que não sabem a linha sucessória dos campeões mundiais, com um sorriso debochado no canto da boca. Bom, existem muitas formas de se encarar os diversos aspectos da vida, sejam eles científicos, políticos, artísticos, culturais e quaisquer outras categorias que você imaginar. No campo enxadrístico, você deve julgar fazer sentido dar crédito a um ex-campeão mundial que segue a linha de treinadores como Mark Dvoretsky.
Pois bem, se você já levou um mate-pastor, não se envergonhe: quase todos já fomos vítimas. Se você já foi o autor: parabéns! Mas, a partir do final desta leitura, a recomendação é que você pare de tentar. Quem sabe no lugar de um ponto agora, você conquiste dez no futuro. Afinal, para jogar bem xadrez, você precisa calcular alguns lances a frente.
O "Mate do Pastor" talvez tenha sido o responsável direto pelo meu interesse pelo xadrez. Quando achei um parceiro na rua onde morava, no bairro paulistano Vila Olímpia, nos idos de 1976, minhas primeiras partidas foram um completo desastre. Levava "um pastor" atrás do outro. Aquilo me desconcertou tanto que passei a estudar, lance por lance, pra me defender do terrível "Mate do Pastor". Depois, meu parceiro me emprestou um livro de introdução ao xadrez, que devorei inteirinho. Pouco tempo depois, ainda, ganhei de presente o “Minhas 60 melhores partidas”, do Bobby Fischer, que também estudei por inteiro, partida por partida (como o GMI Rafael Leitão, do artigo). Resultado: campeão da minha escola em 1979, campeão paulista infantil em 1980, 1° no ranking paulista juvenil em 1982 e convocado como 1° tabuleiro a representar o Estado de São Paulo no JEB's (Jogos Estudantis Brasileiros) de, se não me engano, 1983 (acabei não indo, pois a modalidade xadrez, infelizmente, foi retirada com o argumento de se privilegiar apenas os esportes olímpicos). Como já estava com 17 anos (uma idade considerada já avançada pra não se ter obtido ainda o título de MI (Mestre Internacional) ou mesmo GMI (Grande Mestre Internacional), e também a necessidade de arrajar algum emprego pra me sustentar, acabei abandonando os torneios. Mas tudo começou por causa do tal "Mate do Pastor". Rs.
Que legal essa história! E nunca é tarde para voltar aos torneios :)
Feliz que tenha gostado!