Quintiliano e a Copa do Mundo de Xadrez – Parte 2: A Festa Armênia

    Copa do Mundo de Xadrez – Parte 2: “Time grande não cai”, Decisões Eletrizantes e a Festa Armênia

    Artigo escrito pelo MI Renato Quintiliano

     

    Na primeira parte deste artigo, falei um pouco sobre a Copa do Mundo e como gosto de acompanhar esse torneio, bem como minha impressão sobre as quatro primeiras fases, as surpresas e as polêmicas, analisando partidas que se destacaram em cada etapa e deixando minha previsão para a reta final, que, como veremos, modéstia à parte foi não menos que precisa.

    Esse texto é dedicado à segunda metade da Copa, que se por um lado viu menos surpresas que no início do torneio, por outro nos brindou com decisões eletrizantes e momentos de grande tensão, sem falar nas partidas interessantes que pude acompanhar e analisar para esse post.

     

    5ª Fase: Empates Polêmicos?!; Se Apaga a “Estrela Ivanchuk”; A Paz Retorna ao Olimpo

    Após lutas intensas nas oitavas-de-final, o torneio começa a afunilar e os momentos de decisão ficam cada vez mais próximos, com apenas 8 jogadores almejando as cobiçadas vagas para o Torneio de Candidatos, reservadas para os dois finalistas.

    Se na quarta rodada eu já tinha a suspeita de que os competidores se sentiam cansados, agora veio a confirmação, ao ver Rapport e Fedoseev empatando em menos de 20 lances com Ding e So, respectivamente.

    Apesar de terem pela frente adversários muito sólidos, ambos são conhecidos por seus estilos destemidos e por serem grandes lutadores no tabuleiro, e apesar de empates curtos não agradarem à plateia, não é difícil compreender essa estratégia, com a maratona física que é a Copa do Mundo.

    Porém, Caísse pune, e tanto Rapport como Fedoseev finalmente puderam descansar ao fim do dia seguinte, mas voltando pra casa – ambos foram executados sumariamente em finais técnicos conduzidos praticamente à perfeição por seus adversários (Se quiser melhorar sua técnica com essas partidas, pode assistir o vídeo no qual analiso os melhores finais da Copa).

    O match Vachier Lagrave – Svidler foi equilibrado como eu imaginava, com cada jogador tendo suas chances de brancas, mas terminou em 1-1. Nas rápidas, MVL surpreendeu o russo com um inesperado lance de rei na segunda partida rápida, e assim avançou para as semifinais.

    E o último match a ser abordado, na verdade foi o primeiro a ser definido. Ivanchuk vinha de vitórias sensacionais contra Kramnik e Giri, e muitos se perguntavam se esse não seria seu torneio. Apesar de ser fã da genialidade sem igual do GM ucraniano, sempre achei que seu problema era lidar com a pressão dos torneios nos momentos mais importantes, e em Tbilisi foi o que ocorreu: quando os holofotes se voltaram para Ivanchuk, ele não conseguiu manter o nível até então demonstrado. E ali, à frente, estava um calmo Aronian, pronto para agarrar sua chance e jogar uma partida impecável de brancas, abrindo o marcador.

    Apesar das enérgicas tentativas no dia seguinte, Ivanchuk não conseguiu vencer a segunda partida e assim terminou sua memorável participação na Copa do Mundo. Dessa rodada, analiso a primeira vitória de Aronian, que pode parecer simples à primeira vista, mas não se engane amigo leitor: mesmo quando um Ivanchuk joga mal, é necessário um dinâmico Aronian pra tirar vantagem disso. A base com as partidas pode ser baixada ao final do artigo.

    Assim, apesar de uma Copa do Mundo cheia de surpresas e zebras, os 4 semifinalistas eram jogadores acima de 2770, mostrando que o “Olimpo do Xadrez” ainda não virou bagunça.

     

    Semiffinal: O Último Passo Antes Da Glória é Também o mais Tenso; Finalmente, Armageddon!

    So – Ding, Aronian – Vachier Lagrave. Qualquer um desses quatro jogadores seria merecedor de jogar um Torneio de Candidatos, mas o problema é que, ao fim de no máximo três dias, apenas dois poderiam celebrar essa conquista. Pelo menos, antes desses confrontos decisivos, os jogadores tiveram o luxo de um dia livre para descansar das exaustivas rodadas anteriores. Com tanta coisa em jogo, não foi exatamente surpreendente ver os dois matches indo para os desempates – mas não exatamente de maneiras iguais.

    Aronian e Vachier Lagrave deram uma boa exibição de excelente preparação na abertura, com o francês alcançando a igualdade sem dificuldade na Grunfeld, e Aronian mostrando como sempre que a Ruy Lopez é seu território de pretas. Já o match entre So e Ding foi muito mais dramático. Na primeira partida, após subestimar as dificuldades do final, o GM chinês se viu em dificuldades:

    SoxDing2.jpg

     

    Aqui, após 40… Cb3+, So jogou 41.Rc3??, que permitiu um recurso salvador das pretas: 41… Cd4! 42.gxf6 Th2!!. Surpreendido por esse lance, Wesley decide forçar o empate com 43.Cxb6+ (43.fxg7?? até mesmo perderia Rc2+ 44.Rb4 c5! 45.bxc6 Cxc6#) cxb6 44.fxg7 e agora as pretas tem que dar perpétuo 44…Tc2+ 45.Rb4 Tb2+ 46.Rc3 Tc2+ 47.Rb4 Tb2+ 1/2-1/2.

    Um aliviado Ding Liren com certeza comemorou esse resultado. Você pode descobrir qual era a ideia ganhadora das brancas vendo as análises na base com as partidas deste post.

    No dia seguinte, vimos o cenário reverso: Ding trouxe mais uma vez sua Catalã para a briga, e apesar de jogar uma variante rara, com alguns lances fortes obteve um final bastante agradável e com uma leve, porém duradoura, pressão. Entretanto, um tenaz Wesley So esteve à altura do desafio e, pouco a pouco, reduziu a vantagem adversária à igualdade.

    O desempate entre esses dois jovens jogadores é um bom exemplo da importância do controle psicológico em torneios importantes e partidas tensas, onde há tantas coisas em jogo.

    Na primeira partida rápida, So tinha brancas, mas rapidamente ficou claro que era o GM chinês quem tinha vencido a batalha da abertura: Ding tinha peão a mais quase sem compensação e posição superior, que parecia suficiente para vencer sem problemas. Entretanto, após uma série de imprecisões no apuro, sua vantagem se esvaiu e ele teve que se contentar com um empate.

    Na partida seguinte, numa posição onde Wesley já não tinha problema nenhum na abertura, Ding ofereceu empate no lance 9, que o GM americano aceitou. Acompanhando ao vivo os matches, não tive dúvidas que o chinês ainda não havia assimilado a mudança brusca dos eventos na partida anterior, e, não totalmente recuperado psicologicamente, resolveu acabar rapidamente para ter preciosos minutos onde poderia recobrar os nervos e pôr a cabeça de novo no lugar.

    E que minutos preciosos! Nas partidas semirrápidas, um revigorado Ding Liren jogou pra cima, encontrou a chance certa de entrar nas complicações, e, novamente de pretas, tomou a iniciativa. Dessa vez, a execução foi exemplar, e ele finalmente abriu o marcador. Essa partida decisiva foi a que escolhi para analisar dessa rodada.

    Na partida seguinte, um apático Wesley So não foi capaz de encontrar suas forças e buscar a igualdade: necessitando vencer de pretas, o americano fez uma escolha incompreensível na abertura, que permitiu seu adversário forçar uma estrutura simétrica de peões e jogar inclusive com uma sólida vantagem, ainda que o empate já fosse suficiente, e Ding alcançou esse resultado sem muito esforço, sendo o primeiro GM chinês da história a chegar na final de uma Copa do Mundo de Xadrez, e também o primeiro a classificar para o Torneio de Candidatos.

    Na entrevista após a partida, um surpreendentemente empolgado Ding Liren (para os padrões dos jogadores chineses, claro) condenou a decisão de seu adversário de aceitar empate na abertura da segunda partida rápida, e disse que estava tão feliz que não conseguiria dormir naquela noite. Tudo bem Ding, eu também não conseguiria!

    O outro desempate foi ainda mais dramático. Como torcedor do Aronian, eu sabia que o match seria difícil, pois Vachier Lagrave tem tido bons resultados e nessa Copa manteve um excelente nível nas partidas, além de ser muito bem preparado nas aberturas. Quando o francês venceu a primeira partida rápida, melhorando seu jogo na variante do dia anterior jogada no ritmo clássico, então, a situação pareceu se complicar.

    Realmente tive dúvidas sobre como Aronian poderia passar da Grunfeld, mas o armênio logo mostraria suas cartas. No tabuleiro, a anti-Grunfeld (1.d4 Cf6 2.c4 g6 3.f3) foi a escolha para desafiar seu adversário, e depois de transpor para uma estrutura típica de Benoni, a surpresa veio na seguinte posição:

    SoxDing3.jpg

     

    Com o cavalo em g3 atacado, Aronian simplesmente desenvolveu mais uma peça: 15.Bc4!! uma ideia criativa e bonita, sem dúvida fruto de excelente preparação: hxg3 16.hxg3 e as brancas tem boas perspectivas de ataque pela coluna h aberta. As pretas também têm chances, mas numa partida rápida a defesa tende a ser sempre mais difícil, e no fim o ataque das brancas prevaleceu, 1-0.

    As partidas semirrápidas viram mais duelos teóricos equilibrados na Grunfeld e na Ruy Lopez que terminaram em empates, mesmo sempre ficando a sensação de que Aronian era quem pressionava (ou seria preferência da torcida!?).

    Então veio o blitz, e a tensão aumentou drasticamente: na primeira partida, Aronian jogou uma abertura pouco convencional para desviar das preparações de Vachier Lagrave, e obteve rapidamente vantagem na forma de um jogo mais fácil, e logo sua posição parecia simplesmente ganhadora. Porém, com poucos segundos e muito nervosismo, ele foi incapaz de converter a vantagem, chegando até mesmo a ficar perdido em certo ponto(!), e depois de muita confusão, terminou em empate.

    Na segunda do blitz, apesar de Aronian novamente sair sem dificuldades da abertura na Ruy Lopez e obter jogo mais fácil, simplificou a posição e selou outro empate, que significava decidir tudo no Armageddon.

    Confiante, Vachier Lagrave escolheu as pretas, que jogam com um minuto a menos, mas tem a vantagem do empate. Nenhum match havia sido decidido no Armageddon até então, e esse prometia ser emocionante.

    E que Armageddon! Aronian repetiu a primeira linha do blitz, na qual obteve vantagem facilmente, mas seu adversário inteligentemente elegeu outro caminho, melhor que o anterior, e depois de alguns lances a posição parecia praticamente impossível para o armênio jogar por uma vitória, inclusive com os tempos já até quase igualados num certo momento. Eu realmente sou o tipo de pessoa que fica nervoso acompanhando os desempates da Copa, e torcer pelo Aronian nesse desempate foi, como diria Galvão Bueno, “teste pra cardíaco”.

    Com pouco tempo e uma posição difícil, ele conseguiu gerar um desequilíbrio que criou um final de torres interessante e com chances pros dois lados. O tempo se esgotando e a tensão cada vez maior levaram Vachier Lagrave a cometer alguns erros e, por fim, omitir um recurso salvador, todavia muito difícil, e assim Aronian venceu esse disputado encontro e garantiu também seu lugar no torneio de Candidatos. Na entrevista após o desempate, Aronian disse que estava determinado a classificar para a final, pois não queria decepcionar seu povo e sua torcida – esse foi o dia da Independência Armênia. Parece que o sangue armênio é forte!

     

    Final: O Leão Armênio x O Dragão Chinês; Aronian é o Cara!

    Antes da final, ambos jogadores tiveram um dia livre para descansar novamente e ajustar suas preparações e estratégias.

    Na comunidade enxadrística, Ding Liren era visto como o favorito nesse confronto, jogando um xadrez bem firme nesse torneio, além do escore entre os dois ser bastante favorável ao chinês: 3-0 em partidas clássicas, a vitória mais recente sendo esse ano, na Etapa de Sharjah do Grand Prix da FIDE.

    Mas se tem uma coisa especial no esporte, e ainda mais no xadrez, é que nem sempre a prática é fiel à teoria, e o que vimos no match foi um cenário bastante diferente: um confiante e melhor preparado Aronian logo tomou a frente e mostrou que era quem estava no controle.

    É importante ressaltar que Aronian já foi campeão da Copa do Mundo no passado, e essa experiência com certeza faz toda diferença nesse momento tão importante. Das quatro partidas da final, ele só não teve chances claras de vantagem em uma.

    Na primeira partida, Aronian empregou uma Inglesa com as brancas e deixou passar um bom lance no meio-jogo, depois do que Ding Liren conseguiu igualar sem muitos problemas. Na partida seguinte, mostrou que não é de cair duas vezes no mesmo golpe, e neutralizou sem problemas a Catalã de Ding. A partida parecia encaminhada para um empate, até surgir a seguinte posição:

    dingxaro.jpg

     

    Aqui, Ding jogou de forma descuidada 30.Ccb3?! e após b6! 31.Cxc5 bxa5, as pretas tem um perigoso peão passado distante que dão boas chances de jogar pela vitória nesse final.

    Aqui podemos notar que, a exemplo da primeira partida contra So, Ding Liren parece subestimar um pouco alguns finais de pequena vantagem para seus adversários, sem dúvida algo muito perigoso quando se enfrenta os melhores do mundo. Aronian conduziu bem o final e de fato colocou seu adversário à beira do abismo, quando, na jogada 53, uma decisão imprecisa, seguida de outros erros e uma forte defesa do chinês, que acabaram resultando em outro empate.

    Então veio a terceira partida, outra Inglesa, dessa vez sem muitas emoções e onde o empate parecia provável desde o início. No quarto e último encontro do ritmo clássico, foi a vez de Levon usar sua linha de estimação, a Defesa Ragozin, e de forma quase natural eu diria, igualar com facilidade e ganhar um peão. A posição não parecia tão simples de progredir, mas como diz o ditado, “um peão é um peão”, e eu achava que com boa técnica seria uma vantagem suficiente para Aronian converter o ponto e sair campeão ainda nas partidas clássicas. Entretanto, Ding não estava disposto a vender esse ponto barato, e montou sua melhor resistência. Finalmente, tudo ficou claro na seguinte posição:

    dingxaro2.jpg

     

    Não é tão fácil pras pretas usarem sua vantagem material, as peças brancas estão bem colocadas, e elas encontraram o caminho correto agora com 39.g4! fxg4 40.Txg4, as brancas tem linhas abertas para as peças e podem incomodar o rei adversário, e após 40… Th3 41.Be4! Cxe4 42.Txe4 Txh5 43.Td7+ Rf6 44.Td6 ficou claro que as torres brancas estavam suficientemente ativas nesse final para garantir o empate.

    Então, no tempo normal foi isso, 2-2. A Copa do Mundo seria decidida nas penalidades!

    Ding Liren havia operado alguns milagres defendendo esses finais inferiores, e nesse aspecto não pude deixar de lembrar do Match pelo Campeonato Mundial de 2016 entre Carlsen e Karjakin. Diferente de Carlsen, Aronian não pareceu incomodado ou frustrado por não vencer a resistência de seu obstinado oponente, mas sim tranquilo para decidir no dia seguinte nas rápidas. Nesse ponto já estava claro que era Ding quem precisava encontrar suas forças e “virar o jogo”: apesar do placar ser de igualdade, ele estava pressionado.

    A expectativa era alta pra esse desempate, mas o que se seguiu no dia seguinte foi uma partida de um só lado: Aronian começou já empurrando Ding para a defensiva pegando rapidamente a iniciativa com as brancas em troca de um peão (típico “Estilo Aronian”), e num momento que a tensão já era grande, Após suportar a pressão em muitas partidas, Ding finalmente cometeu um erro e sua defesa desmoronou rapidamente: 1-0.

    O chinês precisava então vencer a todo custo para manter vivo seu sonho de ser o primeiro de seu país a vencer a Copa do Mundo, e apesar de Aronian escolher outra vez sabiamente sua sólida Ragozin, Ding conseguiu gerar o desequilíbrio e lutar pela iniciativa. Provavelmente o momento mais crítico de todo o match foi esse:

    dingxaro3.jpg

     

    As brancas têm mais espaço e acabaram de jogar 21.Tae1, esperando aumentar a pressão no centro e na ala do rei nos próximos lances. Porém, um corajoso Aronian respondeu 21… Cef6!!, o tipo de lance que exige sangue frio e concentração para ser encontrado num momento tão decisivo, e agora surgem algumas complicações com chances pros dois lados, mas principalmente as pretas lutam ativamente, em lugar de ficarem condenadas a uma defesa passiva. Após 22.gxf6 gxf6 23.Bh2 f5! 24.Bxf5 gxf5, as pretas recuperaram a peça e a coluna g aberta dá chances de lutar pela iniciativa. Na sequência, Ding não foi capaz de manter o controle e Aronian terminou inclusive vencendo essa partida também: 2-0. As duas partidas rápidas também foram analisadas para este artigo.

    Finalmente, depois de dezenas de partidas, um torneio-maratona física e mentalmente exaustivo, e muitos momentos tensos e de decisão, Levon Aronian sagrou-se campeão da Copa do Mundo da FIDE 2017! Mais um título para a carreira desse jogador incrível, que nos últimos dois anos vem conquistando excelentes resultados e jogando um xadrez que encanta a todos, sem dúvida um título muito merecido!

    Nesse momento, não vejo um jogador que o mundo do xadrez gostaria mais de ver enfrentando Magnus Carlsen em um match do que Aronian, por isso estarei torcendo por ele no Torneio de Candidatos. A meu ver, Magnus é ainda claramente o melhor do mundo, mas até o próximo match temos tempo, e Karjakin provou em seu encontro com ele que com boa preparação, energia e resistência de ferro, é possível fazer frente ao norueguês.

     

    Preencha o formulário abaixo para ter acesso às minhas análises das melhores partidas da Copa!

     



     

    E essa foi mais uma Copa do Mundo, cheia de surpresas e emoção!

    Gostou deste artigo? Então compartilhe nas redes sociais!

     

     

    SEM COMENTÁRIOS

    Deixe uma Resposta